quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Despedida



Bom dia minha pequena ostrinha. Alguma coisa deposita sua mão sobre nós, dormimos até esperar. E, quando rompe cada ponto, somos obrigados a despencar em algum abismo cuidadosamente cavado. Se não existe perdão, rapidamente somos inclinados a relinchar. Onde estarão elas? qual o domínio mais recente? qual trombeta toca no inferno? Qual tesouro? Qual semente? Apenas aqui há material suficiente para concretar seus ossos, e também os meus. Na mesa já está tudo preparado, flores brancas ou azuis, velas acesas, ossos desmembrados. eles devem sentar ao redor, cruzar os dedos, as pernas, esperar, tecer cada lamúria, suturar algum crânio que necessite. orar baixinho, pedir que escureça violentamente até o ponto de ruptura. isso é absurdamente importante, avançar com raiva e violência até cortar a linha. Entre um silêncio e outro, olhamos para o canto inóspito, a janela foi adequadamente enquadrada. peca por não saber? outros olhos não souberam até então. Pode observar com calma antes que alguma coisa se manifeste, ou que um rombo, um atravessado de raspão. Olha fixamente até a junção dos tetos. Pensa no que acontece, pede ao deus bom que se manifeste se for o caso, mas não espero. Ele pediu que sentássemos na posição requisitada para aguardar o colapso dos rins ou vesícula. Tudo isso ele recebeu ali naquele momento no interior da copa. pronto e suave, pensou, com as mãos sobre os joelhos simples. O que seria pouco a pouco ao longo de um ritual desconhecido? estávamos por esperar. Mas então, cada aposta ali poderia figurar como um novo sofrimento sem que ninguém soubesse. Mas era, acima de tudo, a purificação. Aliás, alguém estaria sabendo fora dali? No corredor, na passarela, no interior do tanque? provavelmente não. Olha a nuvem sombria. Não podemos levantar nem mesmo para verificar, temos de realizar mais de uma dúzia de procedimentos simultâneos sem saber aonde eles levarão. A janela foi silenciosamente aberta para que ninguém pudesse perceber. Uma ratoeira paira sozinha sobre a cômoda, ao lado de restos de comida. Moscas secas caem do outro lado, o vapor floresce as orquídeas, as larvas secas. Olha a nuvem sombria, precisa incendiar cada fragmento do planeta. Todas as grandes infinidades, esse pequeno desenho no asfalto, o funcionário designado não passou para consertar. flores rastejantes, coisas ovaladas, carne decomposta nos sulcos do asfalto, e eu agora sou culpado por ter regurgitado? sem que ninguém perguntasse o que estava ocorrendo? Pontas soltas não desfazem nada do que foi feito janela acima. uma multidão secretamente atinge o prédio ao se deslocar em manada, compensamos com os comprimidos esmigalhados no fundo da garganta. não fez nenhuma diferença, meu deus, a árvore sequer se desloca. não entendo? Um casco bem cuidado, um rosto polido, no espelho de baixo, ali você conseguia terminar, poder sair em paz consigo mesmo e sorrindo. corta cada pedacinho aqui dentro e espera terminar? Por favor, espera. Eu estou disposto a sacrificar tudo por qual rosto ou semente? O ano acaba com tudo. Absorva minha pedra, traga as mãos até a barriga fria; por favor, me envie a ostra cônica. Desista do meu osso, siga em frente sem nada (tudo). Pedais no colo, eu entorto os ombros e pescoço, sigo o suspiro mais silencioso até derrubar as prósperas edificações, e a coisa se manifesta. Ondas não existem. perfazem, contudo, a sala. um riso de criança espoca quietinho no canto, algumas velas já acabaram de roer. O ritual se desenvolve em uma meia dúzia de estágios que desconhecemos. Temos de nos submeter a ele por precaução, antes que toda sanidade se perca em definitivo. Quando se olha com um canto do olho, as frutas secas aparecem penduradas na escada. ele já estava quase morto, olhava e pedia por um sofrimento menor. Apalpamos seus ossos com algodão úmido, não ligamos para os olhares de indignação na mesa, ele perde muito sangue em meu ombro e nesse momento é preciso amaciar sem nada, sem suspeitar. sem dedicar até depois mais tarde esse sonho para mim. Mas o ritual é exaustivo. Corta a árvore até o talo, a estrutura dissolve como meu corpo, sem que ninguém olhe. eu observo transcorrer. Na estrada, no caminho para a floresta. Um anjo-nuvem se desloca, estou um pouco cansada e não apago. Já morri há mais de cinco anos, não volto, me perco na estrada. trago mais carcaças para o ritual, distribuo as cápsulas de sono aos ratos que esperam para mordiscar minhas entranhas. peço a eles que me deixem passar até a próxima. Não me calo, espero que não se sintam efusivos demais para viver. a vida é só um rastro fraco, intrépido. O tempo voa dentro da câmara, doze horas mais tarde tivemos de trazer mais carcaças para que todos pudessem comer. Aos poucos estou voltando, ou é só delírio? Alguém na mesa me pede para que corte as libélulas, me assusto e deixo a faca cair. há uma ostra aqui ao meu lado, ela sussurra em um dialeto que eu já dominei, mas esqueci. Continua sem empurrar. Cada pequeno rastro não segue a estrada, eu rezo para que eles voltem à superfície e para que, segurando minha bacia, eu possa caminhar. não sei se é o melhor modo. Diamanda Galás mastiga meu globo ocular ainda vivo. estoura em lágrimas finas que escorrem e deslizam pelo queixo e abaixo. A ostra azul cimenta meus braços (que já estavam amarrados), e eu apago. Acordo em um estágio ainda mais macabro com os crânios sendo cuidadosamente deitados sobre a mesa, olhando para mim. eu cubro com um pedaço rasgado, subo sentado a ossarina, peço que me deem o extrato mais concentrado para agilizar aquele ritual maçante. depois eu esqueço, despejo meu sangue de volta dentro corpo e volto a respirar. Então me arrependo, caio azul de sono. Pressinto o ar achatar-se sobre a minha cabeça, respiro meu próprio sono hipnótico. Cozinho todas as membranas em uma panela funda, em fogo baixo. Deixo minhas vísceras em uma caixa na portaria, apenas creio e continuo, agora sem pensar em nada. Alguns lapsos de memória ou linguagem fazem apenas sugerir que nada existe, que a realidade é quebrada, que não vale a pena existir, etc. Então é possível crer em todas as coisas que me destroem. eu sinto seus ossos sem roer. Quando chega a madrugada, todos já estão dispersos demais para ouvir o que sussurram os demônios, solto ruídos imperceptíveis já sem paciência, perco um dente cada vez que o vapor sobe da cozinha. Assa um pequeno bebê roxo até tostar. Respiro a maciez tóxica do meu horizonte, espero até acalmar. Ninguém escapa e eu sinto medo pela noite, peço a eles que não soltem minha ostrinha. Ela deve navegar. Deve navegar sozinha. Digo a eles, sempre que vocês rodam eu espero meu ombro deslocar. não digo nenhuma mentira. Os anjos destroncam meus braços e mordem minha cabeça em chamas. Só assim posso trabalhar e viver em paz. Após o ritual, vigiei e orei por quatro dias inteiros até o solo afundar levemente, e eu espero assimilar. Não reconheço em ninguém uma flor, uma penugem. Olho em volta dos olhos também. As frutas secaram tanto que caem no chão e se partem como torrões de açúcar. Espero no desfiladeiro. Ele ainda aquece meus ombros/estamos unidos por um cordão ainda muito frágil (que ele já macetou). Consigo rir sem que nada na atmosfera indique uma floração. O que faço com seus ossos no fim do caminho? Não, essa não é uma pergunta propícia nesse momento. Não estamos preparados para a volta dEle. Não sei esticar. Diga a ele que não acredite em mais nada, não sei o que estou fazendo. Não me deixem engessar por pena, não esperem até que eu colha tarde demais. Outras três horas passam, eles entram, abrem os armários, esfarelam os bulbos de alho, enfrentam os besouros secos, esparramam o sal sem perceber. A fumaça do fogão é excessivamente ácida e corrói minhas mucosas brilhantes. Escorrego em um precipício até perder metade do crânio em uma pedra manualmente talhada. Sei e consigo ver, mas não acumulo nada por medo que minhas articulações frágeis se rompam. Passo a cuidar melhor do corpo já cortado pela metade, não abro mais nada sem antes saber muito bem a procedência. Por exemplo, já consigo me deitar por conta própria, sem desmaiar. Cobre minha crista com sua indiferença azul e pálida. O outro globo ocular não mastigado é um creme claro e aveludado. Recubro meu gordo espaço com a poeira desencaixada das flores, com as sementes de antes. Monto minhas sementes dentro do crânio. Se voltarmos até o alto daquela montanha, ele estará esperando por nós? Ele nos sujou com sua indecência, estamos para sempre marcados com um sinal invertido na testa, e assusta cada canto que possamos entrar e olhar. Mas, se formos até a montanha, ele estará esperando por nós? espero que possa deitar, arrastar minhas cabras e deixá-las evaporando. Já não sinto nada nesses escombros, a tentativa funcionou? Eu deixo de existir e não quero mais voltar.   

Mas qualquer porta está aberta? Depois do ritual eu espero que ela se manifeste. uma luz. Uma sombra macia me segura quando desmaio. Não olho, não escrevo, não percebo. estou tão feliz que mal consigo gritar, engasgo com minha voz. Procuro o pâncreas no jardim para guardar de volta, passo por períodos de sono ou sofreguidão. Não entendo sem andar, estou prestes a chegar ao lugar específico. Não sei se algo orbita em volta de minha placenta pálida pendurada no varal. Abre meu olhar rugoso. termina a lista de acontecimentos para hoje, o espécime depositado no aquário, a rolha dentro do envelope, a geladeira partida, o terreno, o casco renovado. O que fazer com todos os dias que passaram? A flor do algodão se parece comigo? Olhe e me diga. pare de rir, pare de rir e me diga. ela se parece com minha cabeça esmagada? olho para baixo e é inevitável sorrir, o desespero é tudo que existe nessa concha. obrigado por me mostrar a passarela que atravessa a rodovia congestionada, obrigado por me conduzir até ali. encontrei cogumelos, subi nos troncos e caí, você riu? não. eu não me ajudei também. não quis, mas continuei, era levemente frio. esse tempo está devidamente guardado. como dosar as memórias? eu sinto o ruído espacial, algo leva o pêndulo ruidoso. ele virá comigo, comeremos amêndoas escuras! comeremos até vomitar. O final é leve, lúcido. eu respeito seus olhos, construo você com flores e wakame. trago suas flores comigo, espero na calçada. eu despejo e assisto o tempo roer. não espero mais nenhuma asa. trago as sentinelas asmáticas para que não deixem esse fundo de ostra evaporar. trago as plantas alimentícias não convencionais agora já macias, murchas e cadavéricas para jantarmos juntos em uma celebração sob a lua cheia. cubro a cavidade dos meus olhos, me recuso a acreditar.


domingo, 15 de outubro de 2017

Pós-apocalipse



Há uma ostra que segue cada caminho sem roer. Ali, enquanto eu arrumo as meias e batizo seus ossos. Essa ostrinha sobe, sobe esse pontilhado comigo. Foi trazido para o colar das conchas. Ostrinha, segue o pato, abençoa o arado, traz o osso sacrificado de manhã, estoura o câncer em meus olhos, traz ruas ou riachos para meu colo, deposita os embriões na estrada, eles engatinham até o depósito. estão a salvo, tremo de alegria ao olhar. Por favor, não deixe que macetem minha ostrinha. Eu tentei, e muito. eu juro que tentei. Creio nEle como em todas as coisas. o vácuo em meu colo é preciso, deixo de me comunicar, tomo oito litros de chá oxidado por minuto, espero a balsa atracar, ouço o ruído idiossincrático, estico a espinha até alcançar os cabides, peço ao pêndulo que se aquiete. Ouço o pêndulo estiolar. Continuo a escrever e não ouço as vozes na calçada. Peço quieto para que não me atrapalhem. Quais pequenos compartimentos esperam por um deserto. Pode-se retirar ao sentar. Coloque o mesmo tiro para vibrar. Pressione até que saia todo ruído e desmaie. Espere até que nada mais exista. Vamos morrer com cuidado, meu amorzinho? As palavras ainda são promessa. o domínio retorcido de todo um universo. só não apodrecemos porque já fomos cremados. eu adorei quando ela trouxe meu osso para cozinhar e substituiu pequenos corpos, insetos eletrizados, torcidos de manhã. Traz a jóia persa e deposita em minha boca bem aberta, um pequeno rivotril amassado. Há uma ostra, que segue cada caminho sem roer.

sábado, 2 de setembro de 2017

A qualquer momento pode vir o cometa



A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa
A qualquer momento pode vir o cometa


terça-feira, 22 de agosto de 2017

sonolência ou arrebatamento



Ya no seré feliz. Tal vez no importa.
Hay tantas otras cosas en el mundo.
Borges, “1964” 




O caminho vem erguido por uma densa neblina que espiraliza até o céu. Cada vez que cada flor despenca, meu deus. olhe, olhe o céu também. Venha até esse ponto aqui, não há vento que não possa nos embalsamar, ainda bem. fique tranquilo. Pequenas coisas acontecem e nos movem adiante, pensa com um lugar coberto por outras horas. A realidade escorre para fora de nós, nada pode ser feito para detê-la. A realidade, essa pequena coisa ridícula, ultrapassa todo encantamento. O fracasso é muito, mas muito engraçado. Apenas aqui dentro uma extensão como essa pode afundar em crateras incompreensíveis. Enquanto engatinhamos pelo túnel, o mundo lá fora recebe estouros que se propagam em todas as direções. Em algum cômodo em chamas, uma televisão ligada, prostrada e sozinha avisa que a Turquia é o país que mais prende jornalistas no mundo. obrigada. Quebramos cada fatia de parede deixada para trás e somos avisados de que não podemos nos mover demais até o amanhecer. O túnel pode ser muito mais do que uma passagem para o inferno. Por enquanto, melhor é não saber. não estamos em boas águas. O caminho cortado é uma pequena abertura em nossa solidão extrema. O tempo está próximo. O túnel é praticamente um cano grosso lascado, passa carcomendo cada lustre ao luar. florescem teias de aranha em nossos cabelos. Temos de agradecer usando um pé ou um braço (ele nos deu simplesmente tudo o que temos). alegremente depositamos tudo na estante e espirramos com o mofo que cresce nas extremidades da ossatura da caverna. Utilizamos os ossos para afastar as vespas do chão. chegaremos a tempo de ver as coisas que devem acontecer depois destas? agora acabou simplesmente a força para amar as coisas? 

Depois da viagem monumental, chegamos a uma clareira no miolo da cidade, e ali cada um recebe a sentença que já vem cozida e enlatada, torrada e partida, e espera em uma fila medíocre, procura um abrigo até que venha o juízo final. A terra é pouco a pouco invadida por anjos de alguma facção nova ou pouco conhecida. Então um demônio puxa a cadeira para que eu possa me sentar. Em uma grande floreira achatada após um atropelamento, agradecemos a todos por terem sobrevivido a essa maré conosco, mas daqui em diante o que se passa é pura brutalidade sem salvação. estranho como ossos sem lágrimas. A atmosfera é sinistra e risível, o evento é uma grande farsa e todos já suspeitam de um derramamento gratuito de sangue. Antes que seja possível raciocinar, o primeiro anjo sobe a escadaria da igreja, toca a trombeta e as árvores e ervas verdes queimam festivamente sem qualquer comoção. As vespas sofrem um lamento e compartilham do mesmo sinal vaporoso. Elas são retorcidas por cima, assim, veja: (o anjo faz o sinal e nos mostra). úmidas e diminuídas. não há nada que possa estancar a dor. coletamos algumas algas com um escorredor de macarrão e fazemos uma compressa tão quente que só termina de esturricá-las. Eu olho as carcaças e me espanto com seus ossos expostos/o assombro é denso e me cancela o riso. Do outro lado da cerca elas renascem com asas aveludadas e são arrebatadas uma a uma. damos bom dia a todas as vespinhas. Todos os olhos são voltados para elas. É quando o segundo anjo despenca do edifício e, ainda torto no chão, toca desafinado e quase sem fôlego a sua trombeta, e um terço de todo mar que não vemos daqui se transforma em sangue espesso. O anjo esfolado também cumprimenta as vespinhas. E eu sinto que ainda falta um preenchimento absurdo. O terceiro anjo acende um cigarro em meio a multidão e caminha tão calmo e preciso... ele nos olha e diz: não tem problema algum se vocês não estão existindo. E depois some. Uma estrela gigantesca e brilhante cai bruscamente do céu, estouram-se as lâmpadas e ela se apaga para sempre. Tambores desconhecidos ressoam tão longe... A nós humanos nos falta um órgão capaz de digerir o absurdo. De uma porta escancarada sai o quarto anjo e dispersa a multidão com bombas de gás lacrimogênio. a terra escurece e cada animal, planta e pedra passa a tossir incessantemente até esburacar. O quinto anjo, como profetizam as escrituras, traz consigo a chave do poço do abismo. Eu não pude saber, pois já morri e não fui solicitado. As trombetas tocam uma a uma, suportamos tudo cuidadosamente sem perecer. eu já morri há alguns anos e não fui iniciado nessa jaula. Achamos tudo de um mau gosto sem fim. meu deus, olhe o rastro sinistro deixado na estrada e nos olhos. A vida é maravilhosa/um sol surge sobre um quintal/uma criança morre em Aleppo/um tumor domina um ovário. mais nada. O sexto anjo rola de cima de um avestruz, cai de costas no chão e diz: mais nada. E apenas isso. Com ajuda dele, fazemos as malas rapidamente e desistimos de cada coisa precisa. Depois ele solta os quatro anjos de pé nas extremidades do planeta, eles matam um terço de todos e descansam. Assim a atmosfera amorna e engrandece. O sétimo anjo ordena que todos fiquem quietinhos enquanto o assombro não vem. Com todas as instruções anotadas em um manual, ele avisa que em caso de emergência, linhas telefônicas e energia elétrica serão cortadas por alguns minutos, horas ou mesmo anos, mas que podem ser restituídas normalmente nas primeiras horas do próximo dia útil. Ele também avisa que a subida é para poucos e, ainda que gratificante, vertiginosa. Recomenda-se alguma medicação para os que tiverem estômago frágil. Àqueles que possuem labirintite, recomenda-se que aguardem o guindaste para poder subir com conforto e segurança, e assim por diante. Agora, se tivermos de realizar a travessia, estaremos muito mais preparados! pois sim, estaremos mais preparados, e mal podemos esperar pelo fim. O saldo foi positivo, sem sombra de dúvida. mesmo com toda ansiedade, o mundo foi feliz e trouxe ossos para dentro de nossos corpos. O anjo segura as batatas enquanto maciamente costuramos o cadáver que deixamos descongelando da noite para o dia. É uma criança que volta à vida assustada e roga por um balde de água fresca para reidratar as membranas, mas que é ainda incapaz de falar. então pede grunhindo, e nós, é claro, prontamente atendemos. obrigado por continuar tão azul e sem cor! a coragem da criança me emociona, eu voo até a palma de um outro lugar, espero com a floração nova nos ombros, caio até rolar do precipício. tudo é tão enfadonho que rolamos pelo asfalto e dormimos por exatas setenta e oito horas até o evento acabar, e não acaba. O sétimo anjo apenas coroa o bolo e cai em sonolência. quem dera pudéssemos dormir também, mas não: temos de enterrá-los antes! avise o anjo que ronca, avise que temos de enterrá-los antes para que possamos ir. por isso a conclusão é simples. O anjo acorda e ajuda a pulverizar um silêncio voraz. Depois de minutos, um apodrecimento suave arranha a hostilidade do tempo. Enquanto ele segura as batatas, torcemos a porta para o horizonte. “eu preparei o livro e comi” – disse a pobre criancinha, e envelheceu junto de todos ao longo dos milênios até morrer. Tão compacta, tão pequena... mais ou menos do tamanho de uma ostra de jardim. O livrinho, que deveria ser doce como mel, tornou-se amargo ao ser engolido. Mas que floração ridícula! retire-os daí, corremos fazendo sinais enigmáticos usando nossa própria sombra duplicada. tire-os o mais rápido daí, por favor, tire-os rápido o bastante para que não sejam deixados, ignorados aqui. O livro amargou o ventre da criancinha que estava quase liberta. Esforçando-se para ter um mínimo de empatia, o anjo disse-lhe: “eu também tendo a não ser muito feliz”. e depois de alguns segundos de silêncio ruborizado, os dois riram, riram juntos. riram até enfartar. ainda estão rindo, na verdade. quando uma parede aponta para nós, ou o caldo suave amorna no prato, então, ainda estamos rindo aqui embaixo e continuamos. E assim vai. uma montanha sonolenta também é arrebatada vagarosamente com a ajuda de um guindaste para compor as curvas do horizonte no paraíso. Todos que estão sendo arrebatados não possuem rosto. O encerramento do evento não faz com que todas as respostas sejam encontradas. pelo contrário. Há uma profunda confusão mental penetrando cada poro dos que ainda estão ali. também entre os abandonados não se vê mais o rosto de ninguém. ainda estamos na caverna? no túnel? na praça? na montanha recrutada? na montanha não estamos, pois não fomos arrebatados. No túnel não estamos, pois pudemos presenciar o arrebatamento. Ainda há tantas coisas no mundo, lesmas retorcidas ao queimar, rochas coradas de calor, enxofre vazando do encanamento, coisas que queimam sutis. Aos poucos todos os pequenos foram arrebatados, uma doce luz ressurge. que luz quietinha, diz uma criança retorcida no asfalto antes de subir. A atmosfera toda é rosada pelo sol murchando no céu, o espaço todo é vazio, acobreado, triste e pequeno. quem olha ali dentro não entende coisa alguma, ninguém consegue dar um passo sequer sem cair em uma rede pendurada como armadilha. sem enfrentar o peso do mundo inteiro. mas também a morte não existe ali dentro porque já aconteceu. todos que estão queimando e percebem isso, cedo ou tarde são pegos sorrindo ou mesmo gargalhando, construindo com migalhas imundas alguma tranquilidade hipnótica. Dizem que alguns deles, inclusive, depois de queimar completamente e perder para sempre todas as suas terminações nervosas, tornam-se monges e resistem para sempre em alegria apática. Os mais prestativos já ajudaram, mesmo cobertos de queimaduras de terceiro grau, a cobrir toda essa ossatura negativa, ajudaram também a varrer a poeira e desativar a coisa amarga que revolve no estômago. A vida é excessiva dentro de qualquer inferno. Os que estão abandonados também enfrentam o peso do mundo inteiro, constroem mapas e forjam estratégias para trazer para dentro do inferno o inseto e o meteorito abaixo do estômago, sem assustar.  



domingo, 30 de julho de 2017

nota no.4


As rosas com bolores

Tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isto acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
mas a pele da rosa
não esta por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece para sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me.

Adília Lopes

terça-feira, 27 de junho de 2017

Apocalipse de manhã



Cai o meteoro em um exato momento. Atinge o sino pela manhã. Todos caem ao mesmo tempo do universo, reduzem a ostra até um patamar sensível, enterram o mesmo peixe seis vezes, roem a cutícula das aves, mostram o rosto em formato azul. Apagam aqueles que cintilam, continuam sem galhos. Precisam continuar sem galhos e ruins. Cozinham dentes com papoulas, esperam até um ouvido absurdo acabar. Roubam o rosto das horas, transpõem para o tecido interno a poeira das grades, respiram o ar escuro que levanta das moitas em chamas, vivem até que um vento penetre ruim e sem vida, precisam de um ouvido que cuide. Hoje o dia é escuro e não há postes. Olhe para as plantas e espere até reviver. Mas ele cai tão sonoro! cai tão sonoro e depois abafa. Junte as peças e varra por dentro até que ali nada mais se veja. E feche também as janelas  é claro, o ruído não nos deixa adormecer. As pessoas aguardam o meteoro com uma alegria sonora. Torcem os cadarços e não penduram as roupas que já estão secas. Obviamente, pois apenas aguardam porque sem hora marcada pode vir uma destruição. Uma mariposa fraquinha e ressecada pousa na fresta. Torce os olhos de sono/caminha contra o vento. Continua sem galhos. Precisa continuar sem galhos e ruim. Um homem também recebe o impacto mesmo sem a ossatura frágil de uma mariposa. Ele rola os olhos antes mesmo de ver a urtiga espirrar (com o sol entrando em ondas trêmulas primeiro na pele e depois nos nós do crânio e abaixo do queixo e nariz). O ruído ali pode ou não ter asas ou nervos escorridos pelos membros atingidos. Depois eles retornam de ossos traumáticos, acalmam doces o piso quieto da memória. Pisam até que não se veja mais o céu. Percorrem o ondulado sonhando, respirando um ar úmido das cobras quietas. uma pomba nervosa devora um osso em minutos. Crescem de veias azuladas, permanecem fiéis à cópia crescida das flores, permanecem dentro das raízes. Crescem de corredores mais largos. Já a mente não pode desafinar com esse apito. Pede ao apito que se aquiete? Onde estão os postes? Olha a carne espessa e assombra. Continua na clareira, olha o abismo com migalhas. Acerta o alvo, traz a couve para a cesta e semeia. Agora tudo é uma nova luta pela sobrevivência (cuidamos para não sermos enjaulados em um novo universo). Aqui nada mais carece de explicação. Estamos quietos e respiramos o abismo. A dor rompe cada membro comprimido. Outra bomba caiu precisamente sobre o corpo seco da mariposa. Queimamos juntos e as cinzas são amontoadas sobre o carpete e mais adiante. A mariposa nos olha e não sabemos como afrouxar o tronco sisudo da porta ou como romper com cada miolo de árvore quieta. e não é possível comunicar. Como então fugimos daqui? Olhamos o comprimento de escada diante da parede, a janela falsa aponta para uma clareira quase escura como o céu, mas quase não é possível sair daqui. E se rompermos o caule das plantas? Sem hesitar, o céu cobre as horas aquecidas pelo cometa, atravessamos o mural onde fervilham os olhos de todas as espécies um a um. Pode-se virar uma palavra de um lado pro outro e não há nada ali, nada pode ser deslocado se há um completo vácuo de sentido. Rompemos até chegar a uma pesada caverna. A mariposa já não tem pernas para andar, e muito menos nós. Depois que o cometa desceu, as malhas ressecadas da mariposa foram reduzidas a uma cinza espessa (granulosa e incisiva), os pés das pirâmides foram dobrados para dentro de modo que as pessoas pudessem passar sem enxergar por baixo do túnel o tempo passando, que era ruim e no entanto não poderia ser descartado em lixo comum (pois tóxico). Até o céu não podemos crescer. sentimos apenas fervilhar o poste até o mural. Ainda que a atmosfera tenha virado forno, nossos ossos estão tão frescos que poderiam ser apunhalados um a um. A fumaça esconde a origem. Agora a mariposa repousa quieta sobre uma batata no jardim. Cada pessoa que passa está tão viva e tão morta que nada na atmosfera consegue ajudar em uma recuperação sadia. Devemos aceitar todas as perdas, sem exceção? Naquela floresta enorme e sem caules (pois foram todos retirados por conta da metamorfose das ogivas), esperamos que eles tragam o presente satânico, cozinhamos os dentes com papoulas e fechamos os olhos para esperar  uma lágrima escura evapora antes mesmo de escorrer. A dor é um cálculo permanente. As palavras não traduzem dor alguma, não compõem uma sentença coerente, mas apenas se amontoam como broches, como conchas, como partes de carros quebrados, como fósseis de crianças. Sem contar a eles nós podemos amassar nossos próprios rins e misturá-los ao purê? Dois pêndulos caem desorientados, os olhos não saem de suas órbitas e as ondas de vento apontam um caminho. e não há um caminho, apenas as ondas de vento simulam um caminho. Um peixe pula da base e se suicida. Por que não pudemos chegar junto dela? atravessar o cesto com cascas? oferecer a mão suja de café? O olho azul registra peças daquele luar? Uma coisa infeliz rosna em meu colo/a morte é a coisa mais engraçada que já aconteceu. Todas as esperanças cínicas são renovadas após a destruição. um braço sem corpo acena alegre no meio dos escombros, uma perna sem tronco chuta um vaso de samambaia partido e se corta. e poças de sangue seco, e carcaças de crianças sonolentas. o que fazer com tudo isso depois de sonhar? o que fazer com tudo isso depois que a quimera se dissipa e o calor todo despenca junto com todas as palavras ao mesmo tempo? Um feto amortecido olha e sussurra um provérbio que ninguém entende. rompe o luar mais fraco e não permanece no mesmo posto (ninguém permanece). Torce isso, torce como um galho. não reduz a nova fumaça, não é isso. torce no olho. coloca uma fileira sem ondulações. Olhamos o palco vazio: mas então ninguém vai salvar ninguém? É isso mesmo? sim. agradavelmente a ostra responde do fundo menos sonoro do oceano que sim, é isso mesmo, uma gralha ou outra responde, um tufo de terra na parede resmunga que sim, a cobertura de mofo no lustre, os blocos de vento, os pólipos e as treliças. a nuvem de poeira é pouco a pouco dissipada para o oceano morto. um universo de cascas de besouro incendiadas, toda lágrima secou na atmosfera infernal e também os olhos esturricaram e agora lembram ameixas secas compradas a granel. deus olha tudo e acha bom.


terça-feira, 16 de maio de 2017

notas sobre uma floração



“Look on my works, ye mighty, and despair”. Agora um sol áspero já entorta as urtigas. brota as sementes enterradas sob o sol/abre uma semente de algodão. Todas as florzinhas estão voltando. Espera-se até que se abra na frente um buraco (um caminho). O movimento da ostra é apenas pendular. Os brotos estão muito sensíveis. As mudas azuis já dominam o gramado que estufou bruscamente em direção ao céu. Mas ali no descampado, os musgos e bétulas não conseguem sequer alcançar a altura de um pequeno animal sentado. Também as fissuras no solo vulcânico trazem para o interior do sono um ou outro arbusto inutilizado, o subsolo ferve e consome raízes velhas e folhas que nasceram prematuras e tombaram com o vento. Mas aqui, ao contrário, a selva estoura com facilidade. A realidade é dura, quieta, compacta. Quantos ossos são servidos em uma pequena porção? As plantas sobram de orvalho, os caules entortam durante a noite, aparece uma flor muda, conduz pela escada com o cordão/foge dos rastros, consegue o pato para as águas, sabe estar em frente. As tiras de parede sobrevoam e colam na haste de um guarda-sol, respira com calma junto aos neurônios, seduz pelo negativo os espécimes que cintilam no escuro. Sensíveis a uma passagem maior sobre suas cabeças, pincelam os olhos com óleo quente e prosseguem até enfrentar um túnel repleto de carcaças, preciosos estímulos até o mais oco da cidade, e ainda assim deveria haver alguma calma. A ansiedade tem a consistência de um tijolo indigesto embolsado por meu estômago mole. A mortalidade brilha em cada célula de todos, presenteia as sementes enterradas com nutrientes apropriados, um espaço atinge outro e quebra dentro de si mesmo, um gigantesco animal marinho torce as membranas no interior do mar desnivelado pelo escombro. O futuro é espesso, mas atrás de uma porta. Segue por um caminho plano e sem volta. Cresce de um inferno miraculoso onde as ossadas de peixe caminham entre os transeuntes. Há ossos em minha voz? Talvez eu tenha chorado com um procedimento ambíguo? Quantos blocos de sono preenchem o espaço? Quantos quilos de extrato de malte servem para o bolo impreciso? Eu queria estar com vocês criando arestas, despencando de cisnes. Até uma hora mais cedo, sempre cuidando para não arrancar demais os dedos dos pés, cuidando para não desnivelar o terreno. Eu queria dizer, estamos todos perdidamente prontos. Estamos relativamente desesperados quando a âncora cai. Como seria possível viver no fim das contas? Pois se ela também traduz o amor dos outros para nós. Os ossos deslizam maciamente ao longo do eixo, o ar pesado sufoca as urtigas de sono. Estou com medo de alguma dependência, e apesar disso há uma porta. Seriam os outonos dos meus cabelos? Eu sou falho porque não amo suficientemente o desastre? Vou fazer todas as ligações nesse exato momento. Conquistaremos duas rotinas tristes espetadas no mural. Eu poderia me chocar contra uma estrada, uma flor, um osso, um olho. Eu adoro quando você envelhece. Apenas me desculpe por estar tão longe, então vamos girar os ponteiros. O coração ainda boia na tigela de cereal, o gato passeia pelo pátio mas não ousa subir até aqui. E não importa o quanto eu o chame, ele não pode subir até aqui. Não diga que você está atrás de uma porta. É preciso esperar por uma nova revelação ou criá-la? Pois se a boca está cheia de besouros que não voam? Simples ventos modulam o aço das estruturas do quintal, fervem caldos que evaporam, sentem expirar. ruins de sono. A abstração é uma fornalha. A resposta é depositada pelo guindaste no terreno inóspito: então aquilo aconteceu como galhos de árvore! Quais ervas travadas, apenas dissolvidas no líquido que obedece a uma continuação. Vamos girar os próximos ponteiros, as sobras estão irreconhecíveis na bandeja, certas de alguns séculos sem cores, inteiras entortando como os caules depois da janela.  

domingo, 19 de março de 2017

depois da realidade



E as vespas perdidas entre os grãos, e cada coisa acontecia atrás da porta. Todo dia era um ritual para encaixar-se como pessoa, fazer parte da natureza circundante, pertencer ao osso vivo e vibrante de cada hora. Muitas coisas poderiam ser precisamente a ostra que nosso mundo não tinha. Há inúmeras coisas como possibilidades dentro da caixa que paulatinamente trava ao ser aberta. A linguagem precisa ser retirada de dentro do osso. É preciso, ainda que o vento tenha desmanchado o telhado, chutado as calhas e estremecido a estrutura do galpão. por deus que podemos. de algum modo estar dentro da ostra, e também podemos participar. Desde que estivemos impunes por uma terra seca, na qual cada coisa acontecia atrás da porta até morrer. As plantas, por exemplo, cresciam atrás da porta até estiolar. Apenas o corpo presente era um material contra a violência. Estalando cada coisa pela ponta até o ralo. Assim o vapor seco crescia; o rosto amolecia frágil, sem sono. Sem esteiras na porta, sem a decrepitude que engatinhava. A planta de isopor crescia sobre uma folha de papel até despencar. O osso aparecia suave e sem medo. sem receios. O dia amamentava as urtigas. Ao final da tarde e com avanços múltiplos e imperceptíveis que formavam um bloco único que era a própria decadência silenciosa. Os pequenos progressos apareciam como marcas na pele que não podiam ser retiradas com a pinça. A cólica subia até o último osso da garganta, escorria das flores e encharcava a terra arenosa. Pela primeira vez estruturado como edifício, visto dos múltiplos ângulos por um olho distante. Enquanto isso eu me divirto muito comigo mesmo e até saio no pátio. Ali, murado e repentino, uma espécie de segredo aderia ao concreto e aos carros congelados. Nada podia estragar o momento em que as bochechas aqueciam com o vento frio senão talvez a pergunta interrompida que voltava raspando. Depois mais tarde visitava no interior do sono com patas e unhas incompreensíveis. E dormir não quebra tudo? Ou apenas rearranja o mosaico quebrado da realidade? O sono comprime a realidade rachada e o sonho pulsa as fibras desreguladas da memória. A linguagem precisa ser arrancada com os nervos, veias, ranhuras e calos inespecíficos. Abre-se a janela no escuro mais fundo da madrugada e recolhe-se o sinal fresco e salgado. Estamos absolutamente encantados com a coisa que o vento produz. Mesmo um tremor de frio é só mais uma quinquilharia no cômodo de um sonho. Somente quando aberto de madrugada, ele rompe o frio fino que esvazia. Talvez estejamos dentro de uma hora muito lamacenta. talvez o fundo do ralo seja só um espelho que resiste. talvez o que esteja depositado em um prato raso rachado seja a opção mais simplória de um projeto que não deu certo. Assim, cada parte resiste sem conseguir abrir ou brotar. Talvez nem mesmo o pequeno urso seja a ostra? A roda gira novamente em sentido contrário, mas dessa vez impulsionada apenas pelos olhos parados na pedra. Cada grão de arroz da tigela é retirado em câmera lenta. uma vespa entre os grãos sente um esmorecimento. não vai dormir não, morceguinho?. Talvez a tampa do fundo lamacento queira saltar de vez. A dor nos ossos agora é macia e não corrói. O corpo morto também é material contra violência? Individuado, marcado em cada poro, sem esquecimentos. protegidos do desamparo. Seria assim depois de milênios sem cor, seria assim também sem identificar a cor dos milênios gotejando em silêncio por um cano da tubulação. Camas que nos desapontam e adoecem com o peso. Os anos passam atravessando e rasgando uns aos outros. Os ossos pulverizados são depositados na bandeja de plástico descartável. Olhos claros ou escuros observarão a urna até que eles mesmos sejam pulverizados sem constrangimentos. Tão somente os olhos amarelos – sempre vivos de sono e ternura – resistem depois da realidade. entram em uma espécie de casa, levantam o sol pela manhã, deitam e dormem sobre as plantas no vaso.    



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Um pesadelo e depois



Quantas coisas mortas caíram aqui alguma vez? Quais coisas serão ditas aos poucos? Quantas horas já são passado? Então. No dia seguinte recebemos uma desagradável visita dentro do sonho inofensivo. E ali capturam/acordamos em sobressalto. Passamos o dia inteiro com palpitações. Dói cada osso dentro da barriga. Resfria, espera e apaga. Príncipes todos sentados, esperando por uma resposta. Os gelos são coisas abertamente amassadas. Todas as ostras estão rosnando. Ao se contorcerem líquidas e grudentas, apontam para o tempo esvaziado que não recebeu um recheio apropriado para crescer. Muito além disso, a cartela de remédios vazia também denuncia a semana que esvaziou em um átimo de segundo. Quantas ostras estavam dentro de um pasto? Ao nos receberem na porta, eles olharam macios, calmos e receptivos. Eles não precisavam de nós. Na casa enorme, vigas de madeira sustentavam a festa inútil. Todos os parentes rodando como vespas sanguinárias, atraídos pelo cheiro do fracasso ou pela falta de sentido dos ossos? Rodando como animais, sorrindo e não farejando o abismo, eles mal percebiam que ali na fenda do mezanino era o abismo propriamente dito que acontecia. Cada um olhava e dizia nada por qualquer canto que passasse. Lá em cima estavam os três bastante ocupados com suas próprias travessuras. eles não precisavam de nós. Uma dor nos ossos já antiga mas estranhamente colérica e elétrica voltou. Um pardal pousou no travesseiro molhado e caiu em cima. Quantos havia ali dentro? Era uma festa de aniversário simplesmente? Andávamos sem rumo e ninguém percebia. Ninguém percebia uma hora marcada aberta ou fechada sem extrações. Sem areia no pátio. Sem nódulos crescendo nos vasos. Cada coisa inspira um poste que poderia descer sonoro, ainda que não valha a pena para nada. Como as duas avelãs enterradas na tigela de cereal. Era a festa de aniversário que perdemos e que de outro modo fomos obrigados a participar. Voltou em sobressalto, estourou em cada cômodo da casa, pelas vigas de madeira, conversas agitadas, todos sentados ouvindo e olhando na televisão. Eles não pressentiam o desastre? Por que estavam todos ali? Pois se estávamos apegados a uma falsidade constrangedora... Não se deve admirar alguém que só confirma falsamente. Pois sim. Assim que se é. Todas as ostras de uma vez só. Mas quando for chegada a hora – então. Afinal, se de outro planeta entrassem em contato conosco, responderíamos no mesmo instante? Ou demoraria anos e séculos até que apenas uma nuvem de poeira seca trouxesse o som surgido das bocas mortas? Afinal, as coisas só foram boas porque existiram(?). Quantas horas (no total) já são passado? Apenas desfaça os nódulos, arranque as pontas do cordão, traga de novo um feixe de luz e cubra de terra as urtigas. Existe algo que poderia ser revertido? Para que pudéssemos ver a festa de aniversário na televisão, sem comparecer? Ou o que? Uma concha pode ser recheada com todo o assombro e colocada no forno até esturricar. Não há mais nada que se possa fazer, pois, com essa quantidade de assombro, a única opção é rechear a concha e assar até esturricar. Traga também as palmeiras e fatie uma a uma. Espalhe por cima o cascalho sombrio, seco e sincero. Ninguém está aqui. O que acontecia lá em cima para qual não fomos convidados? Uma festa dentro de outra festa? O que acontecia até existir? As malditas ostras sumiram com o cuidado. Quantas lembranças existem que poderiam ser convertidas em qualquer coisa? Ou apenas em um cuidado suave? Todo morcego baixa. Vamos deixar as coisas mais afastadas do centro. É tão frio que talvez esteja vindo o cometa? Horas frias recobrem cada um dos cadáveres e esperam. Em todo tempo decorrido até agora, cada coisa caía no momento em que era empurrada até em cima para ficar. Agora não existe. Amedrontados por termos recebido deles a mesma indiferença que demos a nós mesmos. Nossas vozes sequer conseguiam competir umas com as outras. Em outro sonho, porém, toma-se o táxi em vez do carro, e qual o propósito? Não se sabe. E não é passado. Agora o passado é só a ponta apagada de um sonho.


E depois. Recuperando-se aos poucos, guardando cada coisa em um bolso diferente. Quantas coisas mortas caíram alguma vez aqui? Então a lembrança foi diluída e desativada e o pequeno urso apareceu saltando. Ele trouxe consigo um bolo macio que dividimos ao longo de dias/esperou com um pequeno rosto redondo durante noites sem cessar. Um mar rosa espumou e apareceu. Você me olha e sabe? O que houve foi apenas um assombro? Se foi mesmo, rimos desesperados até cair no sono e roncar. Os processos estão desorganizados. Me ajude a tirar a coisa com a pinça. Ajude a desorganizar cada fatia arranjada. Para que possamos sentar no caos sem cerimônia. Cada pedaço quebrado de vida é preciso amar. Mas por favor, utilize a pinça para tirar cada coisa do lugar. Depois o mar chegou até aqui. Me ajude a desorganizar os blocos cinzentos que empilhei ao longo de anos/desorganize e me ajude a chegar a lugar nenhum. Me ajude a desviar de meu caminho, me ajude a me perder com cuidado e paciência. Agora rodando com outras frações de tempo. Suspirando devagar. Cuidando para que as horas voem vagarosamente para que possamos enquadrá-las uma a uma até sentir. “Virgínia parava um instante para que não acontecesse ter confiança demais e avançar”. Alguém mais está aqui. É preciso não cobrir de palavras as coisas para não contaminá-las. O que levaremos de presente além de um vidro de crisântemos em conserva? Não importa. Deixamos o tempo aberto em todas as pontas para não esvaziar. Algumas horas (ainda) não são passado. É preciso lembrar de não colocá-las junto na conserva para não impedi-las de brotar, e de romper o fio fino que recobre a malha presa aos ossos para que também o diafragma possa inflar novamente e alimentar as horas por mais alguns anos, e assim por diante. 

sábado, 7 de janeiro de 2017

outros resíduos



Ele não poderia estar mais errado. O que está agora. Outro estava atrás, sequer falava, as pedras suspeitavam. Assim está, e dentro de um mês ou alguns meses ou anos as coisas congelam, os arbustos congelam, os olhos congelam, uma ostra sofre comprimida no osso largo, um espírito volta e congela. Antes as coisas preenchiam quase que totalmente o circuito macio, e cada segundo que fosse tomado para uma respiração poderia ser enchido de vida até o fim, até quase romper. Ao expelir coisas que não poderiam existir de outra forma, só assim um rosto poderia morrer. E continua sendo. Com as orelhas atentas eles escutam os sinos incompreensíveis, antigas poças de sangue já seco, ríspidos os pássaros apreciam um congelamento, o meteoro desce e pousa na almofada. O que vem depois? Apenas horas que enxugam as horas de antes, e a insignificância de um inseto. Conforme a pedra, em meu reino as coisas mofam, escorre o líquido e apaga. E não há nada que não possa ser revertido, flores choram lágrimas azuis de sono. Olham as conchas na parede, trancados em casa e com a neve grudando no asfalto, sendo que nunca houve esses olhos sobre nós. O olho não transmite uma coisa, é preciso enriquecer as coisas desse ponto em diante. As paredes estão tão magras, o recheio dos dias é seco e quebradiço, e se nada for feito, esse é o único veículo para uma sobrevida um pouco menos achatada. Entramos e o ar pesa tanto que enfraquece a estrutura das urtigas. Estamos encaixados no interior do veículo, observando o abismo que se forma ao longo da cadeia. Ao lado passa um vento quase colado à paisagem, cada fatia de concreto forma na verdade uma única figura legível na qual estamos encaixados apenas nesse momento, apenas durante esse momento, e logo não mais. Aqui também durante o sono os gatos amenizam sobremaneira a travessia, mas quando ele nos olha deitado, o olho que umedece é o nosso. estamos profundamente abatidos com o sono que a terra escura e fria forma e com a umidade que escapa rapidamente da atmosfera levando consigo todo conteúdo que estava prestes a se formar dentro do dia. E então é noite e no sono os gatos não apenas ronronam, mas também respondem e caminham lado a lado antes de desaparecer. Aprendemos com eles a continuar em linha reta até desaparecer. Essa é a chave para o enigma que na verdade não existe. Como as coisas transcorrem, elas olham para o abismo e logo depois passa para outro instante. Os instantes se sobrepõem. Já é possível respirar e decifrar um pedaço amargo do enigma: ele não é a ostra. sim, felizmente ele não é a ostra, e a ostra ainda existe. Pois sim, agradavelmente somos estufados e esturricados de sangue e ossos e não rimos até desaparecer. Mas essa é a recuperação apropriada. Ele não é a ostra. Não teria sido possível chegar até aqui sem uma palavra, não seria possível acessar uma floresta ou um vale espumado, de jeito nenhum. Aprendemos a amar e a olhar as pessoas como quem olha e ama. Os pulmões sofrem um pouco e quase derretem com as horas. E também, em um momento que não conseguimos viver não há qualquer desespero, apenas encontramos outra coisa para fazer no lugar. Não há nada que não seja dado com o órgão que semeia e recolhe. Não damos as ordens, não completamos as horas. Até que se veja um oceano mais longo até o fim. Se não houvesse mais nada, não estaríamos aqui. Pela força intrínseca cada palavra sai aleatoriamente. Não se trata meramente de encontrar um lugar para deitar e morrer. Vamos todos de agora em diante romper pacientemente o filtro das horas sem qualquer desespero. O dia floresce. O dia não existe. A ponte atravessada sobre dois pontos fixos, rompemos e não sabemos ainda como existir, tudo o que existe é indeterminado? Florescem coisas em nossos ombros. Um arrepio ecoa até uma distância cósmica. E nem existe vento algum, só uma corrente de ar que atravessa com hora marcada, um fio que não existe e nem está aqui. Não existe nenhuma hora dentro do dia porque ninguém está aqui. Apodrecemos nas correntes mais largas, sempre na direção correta. Teremos de velá-los para que eles nos velem depois. Blocos de carne em processo de envelhecimento, coisa com olhos virados, apropriadamente com sombras nos cabelos, outros espécimes correndo sem muito sinal, outros que não entendem e sequer sabem se faz sentido existir, mas é um alívio quando os minutos não meramente passam, mas conseguem também encher um copo ou uma janela ou até mesmo um prato fundo rachado. Não existe isso, vamos retroceder e chegar mais tarde. Vamos esperar que um rosto olhe e imprima um sinal enigmático, é diferente que alguém não esteja aqui sentado olhando, confirmando, esquecendo, desaparecendo também. Há palavras para completar e viver, palavras áridas que não enchem barriga de ninguém. O corpo todo em sua materialidade não chega até a ponta de uma palavra, não atravessa uma ponte qualquer. Não se retira do osso qualquer coisa fácil apenas para dissolver dentro do purê e esquentar. Não. Entretanto, assim que uma palavra é colocada sobre a mesa, substitui-se os talheres por palitos de fósforo e o guardanapo por uma folha morta já prestes a evaporar. O lustre sobre a mesa se transforma em um pêndulo irreconhecível, e não há respiração que não esteja grudada em um monumento maior. Mas é cedo demais e isso não pode ser consertado. A flor cai e esmaga. Eles estão marchando. Eles sabem reviver e assinar o osso em forma de qualquer coisa. Não há tantas peles macias assim, nem coisas que sobrevivam por muito tempo a um bloco pesado de flores. Não há nada encostado na parede. Estamos guardados apropriadamente dentro do passado. Quantas mudas de urtiga existem aqui? Não se sabe. O que resiste nas coisas e depois diminui sem cessar. Depois os cistos crescem e rompem a camada da superfície da pele, excedem seu próprio limite. Os minutos cortados de pólvora, corpos mutilados são abandonados no local. A pele descola em desespero, escapa dali de dentro a mensagem não surgida. Nada consegue fazer sentido de uma vez só. Mas ao grudar uma peça na outra, o quebra-cabeça apresenta um sentido descascado que é melhor que coisa alguma. O osso quebra, a pedra falha. Ele morreu por nós e está lá grudado. Um vento sinistro de algum lugar, a nuvem também é um peso, a flor cai e esmaga. Quem está morto e grudado simplesmente não pode sair. Ainda que uma ostra saia e olhe, ela não vê mais que o contorno da porta empoeirada. Não há tempo suficiente nem mesmo para parafusar uma pedra na parede. Ele morreu por nós e está grudado. Aqui apenas sobrevive aquele que corre e apaga. Cada cogumelo que brota é recoberto pela umidade que escorre da parede. O dia hoje ressurge muito esfarelado, e eu não sei quantas horas restam até o próximo túnel. Cada faca esconde uma fatia de pele cortada. O vazio precisa ser preenchido com algum tipo de fumaça. Encomendamos um trabalho delicado para cobrir com ossos e conchas o vazio exposto. As sombras caem em um movimento sem partida e sem rachadura, as cinzas são depositadas sob uma árvore de tronco espesso. E assim é. Ele não poderia estar mais certo. E ele esteve certo durante esse tempo todo. A venda foi retirada de nossos olhos. Ele esteve certo esse tempo todo e não pôde dizer. Abrimos todas as pontas do dia escuro sem perguntar nada a ninguém.