domingo, 4 de novembro de 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

meu deus, ainda bem que a gente não existe

 

Meu deus, ainda bem que a gente não existe.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Aqueles que viveram os dias

 

Sem saber como começar a dizer tudo, ele simplesmente exclamou apático: “mas que belo dia agora que está acabando”. É claro que ele foi rude, pois eles haviam passado o dia juntos. A verdade é que eles se amavam tanto que a única saída para tanto amor era a morte. A morte seria capaz de fixar o amor como uma verdade eterna e imutável, mas não a vida. Conforme seguiam o fluxo da vida, cada um em seu barco lascado, eles sabiam que poderiam ser separados por ventos que sopravam fortes e confusos, de todos os lados e sem direção definida. Por isso, tudo o que tinham, além do passado e das memórias, era o momento presente, que tremia de ansiedade e desespero. Enquanto fossem jovens, eles seriam ansiosos e desesperados, e só seriam apaziguados quando ficassem acostumados a viver e a envelhecer. Era muito difícil engolir que não havia resposta para nada que acontecia, que as respostas deveriam ser inventadas, e eram sempre póstumas e muito ruins. Deveriam contentar-se, portanto, com a falta de sentido em tudo o que faziam ao longo dos dias, desde botar uma xícara de molho na pia, até começar uma discussão por causa de um cabide ou de uma lâmpada. A vida era tudo aquilo que havia entre aquelas paredes, podia-se livremente cozinhar uma sopa sabor glutamato monossódico ou abrir e fechar uma gaveta. Atividades como essas faziam com que um dia passasse e viesse outro, idêntico ao anterior. Depois os dias ficavam desenfreados, atropelavam-se uns aos outros numa corrida rumo a lugar algum. Quando uma carta chegava, eles não sabiam de onde ela tinha vindo. Se eles eventualmente parassem para contabilizar os anos que os constituíram, o que descobririam? Que os anos eram feitos de unhas roídas e todo tipo de fluido corporal? Pois de que adianta contabilizar o que passou, embora seja só o que nos reste? De que adianta pensar sobre o que adianta e o que não adianta? É preciso coletar os dez mil eventos diários totalmente insignificantes e salvar-se neles. A salvação só pode estar na calda do pudim que não deu certo ou na parede escura de mofo. Além deles não há mais nada, só nossa cara de espanto diante do futuro que vem rápido para engolir a nós e nossas memórias que são só nossas.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Como escrever sobre o desinteresse em escrever?

 

Como escrever sobre o desinteresse em escrever?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

“E por aí vai”

 

Queria ser outra pessoa também, e por aí vai.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Olhe esta samambaia

 

Ela, por exemplo, jamais confessara a um padre que tinha medo de morrer; em vez disso dissera-lhe cheia de intenções e com grande refinamento de alusão: “acho tão mais bonito uma pedra que um passarinho” - com isso talvez quisesse dizer, quem sabe, que uma pedra lhe parecia mais próxima da vida que o passarinho que no seu vôo lhe lembrava a morte, o que, naturalmente, significaria que ela tinha medo de morrer. O padre não entendeu, e ela saíra inconfessada, espantada por não ter tido uma resposta. Havia anos aquela moça não tinha a satisfação de um sucesso.
- Olhe esta samambaia! disse ela para o homem porque uma pessoa não pode dizer “eu te amo”.

 
Este é o drama de Ermelinda, de A maçã no escuro. Tanto quanto nós, ela sabe que a realidade não se encaixa inteira, sem restos, nas palavras. Em geral, as palavras depõem contra nós. Como usá-las, afinal? Quando as pronunciamos, o fazemos com uma carga de memórias, sentimentos e tormentos passados que elas são incapazes de transmitir. Quando falamos, nós às vezes queremos nos falar por inteiros, mas como não conseguimos, falamos as palavras. Quando, por outro lado, queremos nos esconder, usamos a generalidade fria das palavras, que ecoam como um som qualquer, sem valor. Se as usamos, somos mal compreendidos. Se não as usamos, somos incompreendidos. Quando dizemos “eu te amo”, geralmente queremos dizer tantas coisas que o que dizemos passa por banalidade. Quando pedimos para que alguém na mesa nos passe o arroz, as pessoas não sabem que na verdade queremos outro mundo, outro corpo, outra vida, outro modo de existência ou inexistência. Talvez porque, quando dizemos algo, depositamos esse algo diretamente num campo de interpretação alheio, e as pessoas interpretam como lhes é conveniente. Seria preciso dispensar as palavras e viver com base em gestos e grunhidos, o que jamais funcionaria, pois as pessoas nos pedem todos os dias um prato de palavras para comer. Podemos dizer a elas nossa situação emocional recorrendo a metáforas ou nomes científicos de besouros, ou podemos passar horas comunicando a elas sobre a impossibilidade da comunicação. Mas há sempre um problema: se dizemos que estamos alegres, quando na verdade estamos alegres, excitados e rancorosos, bem, como encontrar uma palavra que traduza isso tudo sem passarmos por doidos?
 
É por isso que dou o meu apoio para pessoas que, como Ermelinda, querem dizer “eu te amo”, e no lugar dizem “preciso ir, o sapólio acabou”. Também não culpo aquelas que demoram tanto para dizer, que as palavras apodrecem e se desmancham dentro delas. E aquelas que guardam palavras que cozinham no estômago e causam feridas incômodas. E aquelas que sabem que as palavras nunca dirão tudo. E aquelas que são tão conformadas que nem querem que as palavras digam tudo. E aquelas que são inconformadas e tentam inventar palavras para emoções que não existem. E aquelas que colecionam palavras antigas em diários, memórias ou vidros de conserva.
 
Pois, afinal de contas, nós queremos mesmo que as pessoas nos compreendam? E se tememos que a compreensão venha acompanhada de desânimos e decepções? E se não queremos que nos compreendam porque não queremos nos compreender? E se, por termos acolhido a incompreensão com tanta hospitalidade, rejeitamos e rejeitaremos para todo sempre qualquer tentativa de explicação? E se não queremos nos compreender por medo da tonelada de responsabilidade que cairá sobre nós no momento em que soubermos por que diabos continuamos vivendo? E se fomos nós mesmos que pisoteamos as palavras para que pudéssemos continuar tomando café diariamente com os fantasmas do passado? E se as palavras insuficientes são a salvação que insistimos em evitar?

domingo, 22 de julho de 2012

Acerto de contas

 
- Por que o tempo tinha de passar desse jeito? Queria que você fosse criança para sempre. Aquela criança tão linda, tão meiga, que bebia carpex, shampoo.

- Sim.

- Foi muita irresponsabilidade de sua parte deixar o tempo passar dessa forma.

domingo, 15 de julho de 2012

Salvação pela cultura

 
 
Estou cada dia mais convencido de que nossa única salvação provém da cultura. Ao menos para mim, todas as outras possibilidades não se sustentam ou pouco se sustentam. Não podemos nos apoiar sobre a nossa “natureza humana” que, se de fato existe, é sem sombra de dúvida degenerada e mesquinha. Poderíamos certamente nos apoiar na religião, pois esta é um meio através do qual o homem se expressa culturalmente. Só que há um problema: nós já fomos avisados sobre o desencantamento do mundo, e sabemos que nada mais há de mágico ou sagrado nos céus, na natureza e muito menos nas construções humanas que promovem alguma espécie de espiritualidade. Nós poderíamos então dispensar as construções humanas corruptas e falíveis e nos apoiar em algum deus ou alguma forma de espiritualidade. Só que também fomos avisados sobre a passagem para o materialismo, e sabemos que os espíritos são abstrações, meros produtos do processo de reprodução material da sociedade, e que a divisão entre corpo e alma é ela mesma uma mitologia, um reflexo da divisão de trabalho.

Mas se o apoio de uma força divina infinita está fora de questão, a força humana das pessoas de nosso convívio social é também falível e finita, bem como nós mesmos somos falíveis e finitos. Por isso, não podemos tomar as pessoas como base e também não podemos tomar a nós mesmos como base (embora tenhamos de fazer as duas coisas em algum grau, pois somos seres sociáveis e o nosso auto-reconhecimento depende profundamente do reconhecimento do outro). Com isso, nosso fundamento não pode residir nem em nós mesmos, nem nos outros, nem na natureza e nem em Deus.

Só nos resta a cultura (ou as drogas). Quando falo em cultura, não designo algo muito específico. Falo em cultura como algo que nos alivia para continuarmos vivendo e envelhecendo. Simplesmente o fato de um filme, livro, música ou peça de teatro contribuir para preencher nossos dias miseráveis e ocasionalmente nos tornar seres humanos melhores. Além é claro da força política, subversiva e às vezes até revolucionária que os bons produtos culturais possuem.


Mas e se alguém disser: “a cultura também é ilusória”? Pois eu concordo plenamente. Pois e o que não é ilusório? De qualquer forma sabemos que temos que criar nossos próprios produtos para preencher nossos vazios. Eu não tenho problemas em admitir que a crença na natureza, em Deus, nas pessoas, em nós mesmos, na cultura, no trabalho, na energia dos chacras, no amor, na ciência, na filosofia, na homeopatia, etc. são todas ilusórias enquanto produções de um ser humano falível e finito. Todas elas são tentativas de salvação pessoal. Seja por alienação da realidade, seja por imersão real em seus contextos.
 
Eu sei que o termo “salvação” é bastante teológico e destoa da orientação ateia do meu texto, mas eu insisto em utilizá-lo, pois acredito que o homem é um bicho tosco, insignificante e neurótico, e precisa de uma salvação, só que de uma salvação mundana, pela cultura.
 
 
Esse texto que eu acabei de escrever, por exemplo, é ele mesmo uma tentativa de salvação pela cultura. Ele também é ilusório, pois tenta colocar um fundamento lá onde ele mesmo sabe que não há qualquer fundamento válido. O meu texto sabe que o único fundamento válido é a morte. Mas ele recalca isso para poder continuar a viver, ele faz de conta que há algo com o qual ele pode combater a morte, e que é a cultura. Ainda que ele saiba que não há nada no mundo que possa contra a morte, e que o máximo que a cultura pode realmente combater é o tédio e a ignorância. Que às vezes são piores que a morte.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Um sonho absurdo: galinha de camiseta

 

Fui a um sítio e encontrei uma moça chamada Cristina. Ela lavava o bico de uma galinha que vestia uma camiseta azul. A imagem da galinha de camiseta me alegrou e me espantou. Havia também três cachorros muito bonitos. Eu perguntei a ela o nome deles e ela me respondeu: “Drei Studien zu Hegel”.

sábado, 23 de junho de 2012

Mini crônica sem título

 

Antes me doía a cárie, agora me dói a obturação. 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

“esboço”

 

 

O grande segredo é que não há segredo algum: a venda foi retirada de nossos olhos. Seguimos nosso caminho sem perguntar nada a ninguém. Nas segundas-feiras pela manhã, tomamos nosso café com biscoitos estragados e seguimos pela rua esperando que um ônibus bastante vasto e pesado nos atropele: é nossa luta diária, luta para sobreviver. Queremos que todos se voltem contra nós, respiramos assim uma certa rebeldia. Uma vez eu percebi que dentro da garganta havia um pequeno anel prateado, e esse seria o fim da própria vida engarrafada em barris de aço: um anel na garganta que propagava ondas sonoras pelo céu de ventos calmos.

Um belo dia, na praia, o sol era aquele que refletia nos tocos. As pessoas se sentiam alegres por reunir todas as suas forças e depositá-las sobre os parentes. A avó estava morta e enterrada no morro. O avô agonizava no hospital, achavam que ele só tinha uma hérnia. Os tios viviam sua vida horizontal mesmo que nunca tivessem muito dinheiro no bolso. Os primos eram a alegria faiscante da árvore genealógica: sentiam-se como se estivessem predestinados. Até mesmo netos, bisnetos e também os anexos e agregados viviam como se nunca tivesse havido tristeza naquela família, pois se estavam todos na praia e havia uma onda enorme vindo em direção a eles, era como se o dia terminasse engolindo-os e cuspindo-os, como a própria força vital insiste em fazer conosco.

Dessa forma, em um grande porto muito próximo dali, havia um casal caminhando. Dentro de um poste de luz, uma ossada de cachorro sobrevivia à maresia. Nunca naquele lugar o mar avançara tanto. As pessoas pensavam que suas casas seriam carregadas pela enxurrada e, com elas, todo amor, amizade, companheirismo e gratidão. Não sabiam que isso tudo já estava há tempos afogado sob o denso oceano que viam no horizonte, mas era melhor assim. Pensar que se é feliz era a mesma coisa que ser feliz.

Um belo dia, um cachorro um pouco bravo adentrou um poste levando consigo a areia mole e escura da praia, e assim todos os animais queriam fazer o mesmo: perceberam que a solução para a vida morna e insossa daquele lugar era adentrar os postes e passar a viver como um poste. Inclusive os estudos mais recentes de uma universidade local apontavam para o fato de que é política e ecologicamente correto se transformar em poste, e que é possível fazer isso tanto aos sábados quanto nos dias úteis. Por isso até mesmo as pessoas achavam que viver como um poste seria bastante mais prazeroso: assistiriam com sua sensibilidade aguçada de poste o mar avançar e logo em seguida seriam carregadas junto com entulhos, as árvores, os caminhões de lixo, os pequenos bebês e suas fraldas moles, e todos juntos, em abundante imundície, despencariam no pé do morro e seriam desintegrados pela força da água salgada.

(…)

Enquanto o mar mesmo só queria avançar. Os postes caíam duros em dia de natal. No ano novo, por outro lado, havia grandes quilos de verdura depositados sobre as calçadas, e as donas-de-casa passavam por lá e escolhiam o que de mais estragado encontravam para o preparo de belas sopas que seriam congeladas para serem degustadas somente no inverno. Se, por exemplo, uma pessoa coletava um pedaço de salsão, não havia quem pudesse descartar as folhas de rúcula que cozinhavam quietas do outro lado da calçada. E se algum rapaz passasse por ali naquele momento e resolvesse guardar uma espiga de milho mofada para sua namorada, poderia fazê-lo com tranquilidade, já que estavam todos muito ocupados com seus afazeres para recriminar uma singela demonstração de afeto. Tudo em alguns momentos conduzia-se como se não houvesse qualquer impedimento. Até mesmo as velhas cujos braços não tinham mais força para segurar, pegavam as cenouras azuladas de agrotóxicos com tanta humildade e doçura que os legumes derretiam-se em suas mãos como forma de agradecimento. Elas então depositavam esse purê roxo na sacola de feira e seguiam seu rumo para os casebres do morro.

De vez em quando, no entanto, essa calmaria e normalidade quase sonsas com que as coisas aconteciam na vila eram estorvadas: nos dias de inverno em que a umidade alcançava níveis alarmantes e insuportáveis, um fungo cuja espécie era ainda desconhecida dos homens se espalhava sobre a areia e deixava a praia inabitada por dias, pois as cascas alaranjadas que se enraizavam por tudo criavam um ambiente altamente tóxico para as crianças que vinham ali diariamente rolar na areia e esmagar conchinhas.

(…)

Ele havia cansado de esperar. Dava trabalho demais ser quem ele era. Um dia o sol quebrou-se em dois e as pedras rolaram vivas do precipício. A avó manteve a postura austera, pois sabia que a educação deveria ser dada. A qualquer custo, mesmo se fôssemos crianças tolas, a educação deveria ser dada sem custos.

(…)

Ele continua pensando que chamaria mais atenção ao se expor do que ao se esconder. Permanece, assim, escondido. Mas no ato incomum e turbulento de se esconder, ele se torna todo exposto: sua introversão é provocativa e ele não sabe. Mas, em nome da limpeza do cenário interior, melhor é permanecer contido. Na noite escura, quando o sol se torna fraco para arremessar a dor para longe, surgem os sapos que pulam na estrada e na praia os postes esqueléticos permanecem pendurados na calçada morna. Dentro de nós mesmos há o desconexo: fatias de pressões diversas, paixões queridas, todas solapadas pelo inocente relevo de nossos sonhos infantis.

Na praia é que as coisas realmente se desenvolvem: enquanto estamos presos às palavras, pouca coisa relevante acontece. Nesse cenário ao mesmo tempo raso e exacerbado havia W (seu nome é enfim dado) e suas múltiplas manchas solares pelo corpo. Seus braços eram recobertos de pequenas rochas semiderretidas, e os contornos eram graves como se não houvesse o luar para desencardir seus ombros. W vivia em uma casa perto dos postes, à beira da praia. Havia árvores frondosas e tridimensionais perto do quintal. Dentro de casa, café molhado nas panelas e da janela via-se o espetáculo mundano acontecendo. Havia duas cadeiras na mesa: uma para W e outra para sua mãe, e não havia mais nada que sentir naquele ambiente escuro e quieto, fresco com janelas quebradas, mas preenchido por vapores densos. E também havia a maresia.

(…)

Mas naquele dia ele acordou bem cedo pela manhã, quando ainda é madrugada e as pessoas decidem sair para trabalhar. Não queria mais pensamentos, queria estar cru diante dos fatos que se desenrolavam na baía. Talvez pudesse pegar um barco e remar até a ilha, mas lá passaria a tarde e o dia todo quem sabe, e depois voltaria como se nada tivesse acontecido, porque de fato a vida seguiria igual. Tudo sempre continuaria igual, era essa a impressão que ele absorvia dos fatos sempre medíocres. Mudanças são sempre penosas, e o mais cômodo é continuar incomunicável. Sim, mas incomunicável na praia, o que lhe dava um charme mais agudo.

Era difícil levantar-se da cama. Ouvia abelhas cujo zumbido se propagava até atingir o início de formação das ondas do mar, trezentos e setenta bilhões de anos atrás. Também os dias cresciam sórdidos, cheios de fermento. As folhas ameaçavam querer cair das árvores, e havia carros que se desprendiam dos abismos, e as pessoas se espatifavam no chão. Nunca haveria tanta podridão assim. O mundo caía cheio de vísceras suculentas, depositárias de sangue, fezes e urina que vazavam dos corpos docemente, enquanto alguém cogitava a hipótese de ir até a praia. Ele nunca saberia que naquele dia a praia não era para ser vista, como se cogumelos pudessem se esconder por livre e espontânea vontade sob a camada cheirosa de grama. A cama era uma agradável opção. O travesseiro encharcado de calor do outono recém-chegado.

 

(…)