Olharam-se por um átimo de segundo antes de consumarem juntos o ritual. Naquela época, ainda não sabiam que o tempo passava, e que o passado mal digerido criava bolhas por dentro do corpo que explodem e ardem com certa regularidade. Que bom, porque o futuro estava por fazer. A verdade é que eles eram cúmplices desde muito cedo. Depois de anos, no dia e hora marcados, eles se encontraram para realizar aquilo que vinham planejando com bastante minúcia: pular do telhado com alegria. Era um dia tão forte e alegre que se duvidava inclusive que era dia e tinha sol e era alegre. Pombas gordas de sangue escorriam pelas ruas, árvores murchavam quietas em depressão e pessoas andavam pelas calçadas sem saber absolutamente nada de nada do mundo e da vida. Ela era magra e tinha olhos puxados. Ele era branco e levemente roliço. Aquele era um dia de muita alegria, com certeza. Seria essa, de modo cômico ou grotesco, a redenção? Eram sete horas da manhã, hora de tomar uma atitude drástica e irracional. Deram-se as mãos e pularam. Ele quebrou um fêmur. Ela, duas costelas e um braço. Saíram caminhando pela rua como se nada tivesse acontecido, quase roxos pela falta de ar decorrente mais de um ataque de riso do que propriamente da queda. Eles nunca mais conseguiriam controlar o riso. Era engraçado demais que após uma vida de sofrimento as pessoas apodrecessem e deixassem de existir. Era de um mau gosto tão cáustico e insuportável, que era preciso muita mitologia para encobrir uma verdade tão drástica como essa. Mas morrer não seria o final mais alegre e grandioso? Sim. Mas ainda assim era feio, sujo, incômodo, ilógico. Ainda bem que poderiam viver sem ver a verdade. Não era suficiente adquirir ilusões, era preciso vivê-las, transformar a realidade cinzenta numa grande mentira cheia de amor e doçura, uma peça de teatro de baixa qualidade. Nessa peça, as pessoas entravam e saíam da nossa vida e sabe deus pra onde iam, e sabe deus pra onde nós íamos. Não havia sentido na superfície das coisas, e muito menos no interior delas. Poder-se-ia tomar sorvete com aquelas pessoas? Nossa, mas claro que com certeza que sim. Poder-se-ia adentrar suas vidas medíocres, para que pudéssemos esquecer por um instante de nossa própria mediocridade? Claro, pois certamente. Mas apesar disso, eles optaram por outras aventuras. Como ainda estavam vivos, decidiram passar o dia temperando as aftas da boca com sal e limão, fritando bifes e vendo filmes lentos e interessantes. Assim que anoiteceu, decidiram atear fogo em seus cabelos. Fizeram isso ao ar livre, num local com pouca iluminação, e que baita espetáculo pirotécnico que sucedeu-se. Depois, com o cérebro em cinzas, saíram pela rua cantando alto as músicas que os fizeram ser quem eram. Depois conversaram sobre extraterrestres e clamaram por uma abdução alienígena, que infelizmente não viria a acontecer. Também lamentaram a idiotice das horas e dos dias e levaram um susto: os dias eram tão, mas tão idiotas, não havia o que tirar nem por. As pessoas, tão hipócritas, procuravam a salvação nas coisas mais sobrenaturais, sem saber que, se a salvação era possível, só podia estar no sexo e no silêncio. A carne é que precisava urgentemente ser salva, pois é só o que somos, carne, sangue, angústia, fome e silêncio. Por isso as pessoas estariam para todo sempre vazias e carentes, com a ilusão de que seriam eternamente nutridas por um ser espiritual. E mais e mais elas socariam seus impulsos para dentro de si mesmas, até adoecerem e emudecerem diante da descoberta de um câncer terminal. Oras bolas. A coisa mais misteriosa que havia, que era a realidade, não tinha mistério algum. Não dava pra mudar nada. Só a morte mudaria. Até lá, a vida seria uma planície esburacada, cheia das crises mais fundas e infundadas. Assim, eles se viram diante de apenas duas possibilidades, tendo já descartado a hipocrisia da busca espiritual: poderiam afundar-se no nada, como bem faziam os monges, ou poderiam afundar-se em alguma imbecilidade mais concreta, como fabricar cabides ou dissecar sapos. Mas havia também o amor. O amor era líquido, e também podia ser sólido. Mas eles eram neutros. Eram neutros quando eram crianças e ficavam escondidos dos outros no recreio. Eram neutros na adolescência quando, ainda escondidos dos outros no recreio, trocavam impressões virtualmente sobre o mundo caótico dos humanos e sonhavam com um futuro cinzento e insosso. Naquela época, o mundo ainda tinha algum brilho, e as pessoas ainda existiam. E agora adultos eles estavam obcecados pela neutralidade. Já quase não conseguiam mais ver as poucas cores que os circundavam no passado, só podiam sonhar com elas e, eventualmente, escrever textos desinteressantes e dispensáveis se queixando das lâmpadas que continuavam queimadas dia após dia e relembrando o tempo em que possuíam um ao outro, e, sem saber, também o mundo.