terça-feira, 22 de agosto de 2017

sonolência ou arrebatamento



Ya no seré feliz. Tal vez no importa.
Hay tantas otras cosas en el mundo.
Borges, “1964” 




O caminho vem erguido por uma densa neblina que espiraliza até o céu. Cada vez que cada flor despenca, meu deus. olhe, olhe o céu também. Venha até esse ponto aqui, não há vento que não possa nos embalsamar, ainda bem. fique tranquilo. Pequenas coisas acontecem e nos movem adiante, pensa com um lugar coberto por outras horas. A realidade escorre para fora de nós, nada pode ser feito para detê-la. A realidade, essa pequena coisa ridícula, ultrapassa todo encantamento. O fracasso é muito, mas muito engraçado. Apenas aqui dentro uma extensão como essa pode afundar em crateras incompreensíveis. Enquanto engatinhamos pelo túnel, o mundo lá fora recebe estouros que se propagam em todas as direções. Em algum cômodo em chamas, uma televisão ligada, prostrada e sozinha avisa que a Turquia é o país que mais prende jornalistas no mundo. obrigada. Quebramos cada fatia de parede deixada para trás e somos avisados de que não podemos nos mover demais até o amanhecer. O túnel pode ser muito mais do que uma passagem para o inferno. Por enquanto, melhor é não saber. não estamos em boas águas. O caminho cortado é uma pequena abertura em nossa solidão extrema. O tempo está próximo. O túnel é praticamente um cano grosso lascado, passa carcomendo cada lustre ao luar. florescem teias de aranha em nossos cabelos. Temos de agradecer usando um pé ou um braço (ele nos deu simplesmente tudo o que temos). alegremente depositamos tudo na estante e espirramos com o mofo que cresce nas extremidades da ossatura da caverna. Utilizamos os ossos para afastar as vespas do chão. chegaremos a tempo de ver as coisas que devem acontecer depois destas? agora acabou simplesmente a força para amar as coisas? 

Depois da viagem monumental, chegamos a uma clareira no miolo da cidade, e ali cada um recebe a sentença que já vem cozida e enlatada, torrada e partida, e espera em uma fila medíocre, procura um abrigo até que venha o juízo final. A terra é pouco a pouco invadida por anjos de alguma facção nova ou pouco conhecida. Então um demônio puxa a cadeira para que eu possa me sentar. Em uma grande floreira achatada após um atropelamento, agradecemos a todos por terem sobrevivido a essa maré conosco, mas daqui em diante o que se passa é pura brutalidade sem salvação. estranho como ossos sem lágrimas. A atmosfera é sinistra e risível, o evento é uma grande farsa e todos já suspeitam de um derramamento gratuito de sangue. Antes que seja possível raciocinar, o primeiro anjo sobe a escadaria da igreja, toca a trombeta e as árvores e ervas verdes queimam festivamente sem qualquer comoção. As vespas sofrem um lamento e compartilham do mesmo sinal vaporoso. Elas são retorcidas por cima, assim, veja: (o anjo faz o sinal e nos mostra). úmidas e diminuídas. não há nada que possa estancar a dor. coletamos algumas algas com um escorredor de macarrão e fazemos uma compressa tão quente que só termina de esturricá-las. Eu olho as carcaças e me espanto com seus ossos expostos/o assombro é denso e me cancela o riso. Do outro lado da cerca elas renascem com asas aveludadas e são arrebatadas uma a uma. damos bom dia a todas as vespinhas. Todos os olhos são voltados para elas. É quando o segundo anjo despenca do edifício e, ainda torto no chão, toca desafinado e quase sem fôlego a sua trombeta, e um terço de todo mar que não vemos daqui se transforma em sangue espesso. O anjo esfolado também cumprimenta as vespinhas. E eu sinto que ainda falta um preenchimento absurdo. O terceiro anjo acende um cigarro em meio a multidão e caminha tão calmo e preciso... ele nos olha e diz: não tem problema algum se vocês não estão existindo. E depois some. Uma estrela gigantesca e brilhante cai bruscamente do céu, estouram-se as lâmpadas e ela se apaga para sempre. Tambores desconhecidos ressoam tão longe... A nós humanos nos falta um órgão capaz de digerir o absurdo. De uma porta escancarada sai o quarto anjo e dispersa a multidão com bombas de gás lacrimogênio. a terra escurece e cada animal, planta e pedra passa a tossir incessantemente até esburacar. O quinto anjo, como profetizam as escrituras, traz consigo a chave do poço do abismo. Eu não pude saber, pois já morri e não fui solicitado. As trombetas tocam uma a uma, suportamos tudo cuidadosamente sem perecer. eu já morri há alguns anos e não fui iniciado nessa jaula. Achamos tudo de um mau gosto sem fim. meu deus, olhe o rastro sinistro deixado na estrada e nos olhos. A vida é maravilhosa/um sol surge sobre um quintal/uma criança morre em Aleppo/um tumor domina um ovário. mais nada. O sexto anjo rola de cima de um avestruz, cai de costas no chão e diz: mais nada. E apenas isso. Com ajuda dele, fazemos as malas rapidamente e desistimos de cada coisa precisa. Depois ele solta os quatro anjos de pé nas extremidades do planeta, eles matam um terço de todos e descansam. Assim a atmosfera amorna e engrandece. O sétimo anjo ordena que todos fiquem quietinhos enquanto o assombro não vem. Com todas as instruções anotadas em um manual, ele avisa que em caso de emergência, linhas telefônicas e energia elétrica serão cortadas por alguns minutos, horas ou mesmo anos, mas que podem ser restituídas normalmente nas primeiras horas do próximo dia útil. Ele também avisa que a subida é para poucos e, ainda que gratificante, vertiginosa. Recomenda-se alguma medicação para os que tiverem estômago frágil. Àqueles que possuem labirintite, recomenda-se que aguardem o guindaste para poder subir com conforto e segurança, e assim por diante. Agora, se tivermos de realizar a travessia, estaremos muito mais preparados! pois sim, estaremos mais preparados, e mal podemos esperar pelo fim. O saldo foi positivo, sem sombra de dúvida. mesmo com toda ansiedade, o mundo foi feliz e trouxe ossos para dentro de nossos corpos. O anjo segura as batatas enquanto maciamente costuramos o cadáver que deixamos descongelando da noite para o dia. É uma criança que volta à vida assustada e roga por um balde de água fresca para reidratar as membranas, mas que é ainda incapaz de falar. então pede grunhindo, e nós, é claro, prontamente atendemos. obrigado por continuar tão azul e sem cor! a coragem da criança me emociona, eu voo até a palma de um outro lugar, espero com a floração nova nos ombros, caio até rolar do precipício. tudo é tão enfadonho que rolamos pelo asfalto e dormimos por exatas setenta e oito horas até o evento acabar, e não acaba. O sétimo anjo apenas coroa o bolo e cai em sonolência. quem dera pudéssemos dormir também, mas não: temos de enterrá-los antes! avise o anjo que ronca, avise que temos de enterrá-los antes para que possamos ir. por isso a conclusão é simples. O anjo acorda e ajuda a pulverizar um silêncio voraz. Depois de minutos, um apodrecimento suave arranha a hostilidade do tempo. Enquanto ele segura as batatas, torcemos a porta para o horizonte. “eu preparei o livro e comi” – disse a pobre criancinha, e envelheceu junto de todos ao longo dos milênios até morrer. Tão compacta, tão pequena... mais ou menos do tamanho de uma ostra de jardim. O livrinho, que deveria ser doce como mel, tornou-se amargo ao ser engolido. Mas que floração ridícula! retire-os daí, corremos fazendo sinais enigmáticos usando nossa própria sombra duplicada. tire-os o mais rápido daí, por favor, tire-os rápido o bastante para que não sejam deixados, ignorados aqui. O livro amargou o ventre da criancinha que estava quase liberta. Esforçando-se para ter um mínimo de empatia, o anjo disse-lhe: “eu também tendo a não ser muito feliz”. e depois de alguns segundos de silêncio ruborizado, os dois riram, riram juntos. riram até enfartar. ainda estão rindo, na verdade. quando uma parede aponta para nós, ou o caldo suave amorna no prato, então, ainda estamos rindo aqui embaixo e continuamos. E assim vai. uma montanha sonolenta também é arrebatada vagarosamente com a ajuda de um guindaste para compor as curvas do horizonte no paraíso. Todos que estão sendo arrebatados não possuem rosto. O encerramento do evento não faz com que todas as respostas sejam encontradas. pelo contrário. Há uma profunda confusão mental penetrando cada poro dos que ainda estão ali. também entre os abandonados não se vê mais o rosto de ninguém. ainda estamos na caverna? no túnel? na praça? na montanha recrutada? na montanha não estamos, pois não fomos arrebatados. No túnel não estamos, pois pudemos presenciar o arrebatamento. Ainda há tantas coisas no mundo, lesmas retorcidas ao queimar, rochas coradas de calor, enxofre vazando do encanamento, coisas que queimam sutis. Aos poucos todos os pequenos foram arrebatados, uma doce luz ressurge. que luz quietinha, diz uma criança retorcida no asfalto antes de subir. A atmosfera toda é rosada pelo sol murchando no céu, o espaço todo é vazio, acobreado, triste e pequeno. quem olha ali dentro não entende coisa alguma, ninguém consegue dar um passo sequer sem cair em uma rede pendurada como armadilha. sem enfrentar o peso do mundo inteiro. mas também a morte não existe ali dentro porque já aconteceu. todos que estão queimando e percebem isso, cedo ou tarde são pegos sorrindo ou mesmo gargalhando, construindo com migalhas imundas alguma tranquilidade hipnótica. Dizem que alguns deles, inclusive, depois de queimar completamente e perder para sempre todas as suas terminações nervosas, tornam-se monges e resistem para sempre em alegria apática. Os mais prestativos já ajudaram, mesmo cobertos de queimaduras de terceiro grau, a cobrir toda essa ossatura negativa, ajudaram também a varrer a poeira e desativar a coisa amarga que revolve no estômago. A vida é excessiva dentro de qualquer inferno. Os que estão abandonados também enfrentam o peso do mundo inteiro, constroem mapas e forjam estratégias para trazer para dentro do inferno o inseto e o meteorito abaixo do estômago, sem assustar.  



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