sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

“esboço”

 

 

O grande segredo é que não há segredo algum: a venda foi retirada de nossos olhos. Seguimos nosso caminho sem perguntar nada a ninguém. Nas segundas-feiras pela manhã, tomamos nosso café com biscoitos estragados e seguimos pela rua esperando que um ônibus bastante vasto e pesado nos atropele: é nossa luta diária, luta para sobreviver. Queremos que todos se voltem contra nós, respiramos assim uma certa rebeldia. Uma vez eu percebi que dentro da garganta havia um pequeno anel prateado, e esse seria o fim da própria vida engarrafada em barris de aço: um anel na garganta que propagava ondas sonoras pelo céu de ventos calmos.

Um belo dia, na praia, o sol era aquele que refletia nos tocos. As pessoas se sentiam alegres por reunir todas as suas forças e depositá-las sobre os parentes. A avó estava morta e enterrada no morro. O avô agonizava no hospital, achavam que ele só tinha uma hérnia. Os tios viviam sua vida horizontal mesmo que nunca tivessem muito dinheiro no bolso. Os primos eram a alegria faiscante da árvore genealógica: sentiam-se como se estivessem predestinados. Até mesmo netos, bisnetos e também os anexos e agregados viviam como se nunca tivesse havido tristeza naquela família, pois se estavam todos na praia e havia uma onda enorme vindo em direção a eles, era como se o dia terminasse engolindo-os e cuspindo-os, como a própria força vital insiste em fazer conosco.

Dessa forma, em um grande porto muito próximo dali, havia um casal caminhando. Dentro de um poste de luz, uma ossada de cachorro sobrevivia à maresia. Nunca naquele lugar o mar avançara tanto. As pessoas pensavam que suas casas seriam carregadas pela enxurrada e, com elas, todo amor, amizade, companheirismo e gratidão. Não sabiam que isso tudo já estava há tempos afogado sob o denso oceano que viam no horizonte, mas era melhor assim. Pensar que se é feliz era a mesma coisa que ser feliz.

Um belo dia, um cachorro um pouco bravo adentrou um poste levando consigo a areia mole e escura da praia, e assim todos os animais queriam fazer o mesmo: perceberam que a solução para a vida morna e insossa daquele lugar era adentrar os postes e passar a viver como um poste. Inclusive os estudos mais recentes de uma universidade local apontavam para o fato de que é política e ecologicamente correto se transformar em poste, e que é possível fazer isso tanto aos sábados quanto nos dias úteis. Por isso até mesmo as pessoas achavam que viver como um poste seria bastante mais prazeroso: assistiriam com sua sensibilidade aguçada de poste o mar avançar e logo em seguida seriam carregadas junto com entulhos, as árvores, os caminhões de lixo, os pequenos bebês e suas fraldas moles, e todos juntos, em abundante imundície, despencariam no pé do morro e seriam desintegrados pela força da água salgada.

(…)

Enquanto o mar mesmo só queria avançar. Os postes caíam duros em dia de natal. No ano novo, por outro lado, havia grandes quilos de verdura depositados sobre as calçadas, e as donas-de-casa passavam por lá e escolhiam o que de mais estragado encontravam para o preparo de belas sopas que seriam congeladas para serem degustadas somente no inverno. Se, por exemplo, uma pessoa coletava um pedaço de salsão, não havia quem pudesse descartar as folhas de rúcula que cozinhavam quietas do outro lado da calçada. E se algum rapaz passasse por ali naquele momento e resolvesse guardar uma espiga de milho mofada para sua namorada, poderia fazê-lo com tranquilidade, já que estavam todos muito ocupados com seus afazeres para recriminar uma singela demonstração de afeto. Tudo em alguns momentos conduzia-se como se não houvesse qualquer impedimento. Até mesmo as velhas cujos braços não tinham mais força para segurar, pegavam as cenouras azuladas de agrotóxicos com tanta humildade e doçura que os legumes derretiam-se em suas mãos como forma de agradecimento. Elas então depositavam esse purê roxo na sacola de feira e seguiam seu rumo para os casebres do morro.

De vez em quando, no entanto, essa calmaria e normalidade quase sonsas com que as coisas aconteciam na vila eram estorvadas: nos dias de inverno em que a umidade alcançava níveis alarmantes e insuportáveis, um fungo cuja espécie era ainda desconhecida dos homens se espalhava sobre a areia e deixava a praia inabitada por dias, pois as cascas alaranjadas que se enraizavam por tudo criavam um ambiente altamente tóxico para as crianças que vinham ali diariamente rolar na areia e esmagar conchinhas.

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Ele havia cansado de esperar. Dava trabalho demais ser quem ele era. Um dia o sol quebrou-se em dois e as pedras rolaram vivas do precipício. A avó manteve a postura austera, pois sabia que a educação deveria ser dada. A qualquer custo, mesmo se fôssemos crianças tolas, a educação deveria ser dada sem custos.

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Ele continua pensando que chamaria mais atenção ao se expor do que ao se esconder. Permanece, assim, escondido. Mas no ato incomum e turbulento de se esconder, ele se torna todo exposto: sua introversão é provocativa e ele não sabe. Mas, em nome da limpeza do cenário interior, melhor é permanecer contido. Na noite escura, quando o sol se torna fraco para arremessar a dor para longe, surgem os sapos que pulam na estrada e na praia os postes esqueléticos permanecem pendurados na calçada morna. Dentro de nós mesmos há o desconexo: fatias de pressões diversas, paixões queridas, todas solapadas pelo inocente relevo de nossos sonhos infantis.

Na praia é que as coisas realmente se desenvolvem: enquanto estamos presos às palavras, pouca coisa relevante acontece. Nesse cenário ao mesmo tempo raso e exacerbado havia W (seu nome é enfim dado) e suas múltiplas manchas solares pelo corpo. Seus braços eram recobertos de pequenas rochas semiderretidas, e os contornos eram graves como se não houvesse o luar para desencardir seus ombros. W vivia em uma casa perto dos postes, à beira da praia. Havia árvores frondosas e tridimensionais perto do quintal. Dentro de casa, café molhado nas panelas e da janela via-se o espetáculo mundano acontecendo. Havia duas cadeiras na mesa: uma para W e outra para sua mãe, e não havia mais nada que sentir naquele ambiente escuro e quieto, fresco com janelas quebradas, mas preenchido por vapores densos. E também havia a maresia.

(…)

Mas naquele dia ele acordou bem cedo pela manhã, quando ainda é madrugada e as pessoas decidem sair para trabalhar. Não queria mais pensamentos, queria estar cru diante dos fatos que se desenrolavam na baía. Talvez pudesse pegar um barco e remar até a ilha, mas lá passaria a tarde e o dia todo quem sabe, e depois voltaria como se nada tivesse acontecido, porque de fato a vida seguiria igual. Tudo sempre continuaria igual, era essa a impressão que ele absorvia dos fatos sempre medíocres. Mudanças são sempre penosas, e o mais cômodo é continuar incomunicável. Sim, mas incomunicável na praia, o que lhe dava um charme mais agudo.

Era difícil levantar-se da cama. Ouvia abelhas cujo zumbido se propagava até atingir o início de formação das ondas do mar, trezentos e setenta bilhões de anos atrás. Também os dias cresciam sórdidos, cheios de fermento. As folhas ameaçavam querer cair das árvores, e havia carros que se desprendiam dos abismos, e as pessoas se espatifavam no chão. Nunca haveria tanta podridão assim. O mundo caía cheio de vísceras suculentas, depositárias de sangue, fezes e urina que vazavam dos corpos docemente, enquanto alguém cogitava a hipótese de ir até a praia. Ele nunca saberia que naquele dia a praia não era para ser vista, como se cogumelos pudessem se esconder por livre e espontânea vontade sob a camada cheirosa de grama. A cama era uma agradável opção. O travesseiro encharcado de calor do outono recém-chegado.

 

(…)