quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Despedida



Bom dia minha pequena ostrinha. Alguma coisa deposita sua mão sobre nós, dormimos até esperar. E, quando rompe cada ponto, somos obrigados a despencar em algum abismo cuidadosamente cavado. Se não existe perdão, rapidamente somos inclinados a relinchar. Onde estarão elas? qual o domínio mais recente? qual trombeta toca no inferno? Qual tesouro? Qual semente? Apenas aqui há material suficiente para concretar seus ossos, e também os meus. Na mesa já está tudo preparado, flores brancas ou azuis, velas acesas, ossos desmembrados. eles devem sentar ao redor, cruzar os dedos, as pernas, esperar, tecer cada lamúria, suturar algum crânio que necessite. orar baixinho, pedir que escureça violentamente até o ponto de ruptura. isso é absurdamente importante, avançar com raiva e violência até cortar a linha. Entre um silêncio e outro, olhamos para o canto inóspito, a janela foi adequadamente enquadrada. peca por não saber? outros olhos não souberam até então. Pode observar com calma antes que alguma coisa se manifeste, ou que um rombo, um atravessado de raspão. Olha fixamente até a junção dos tetos. Pensa no que acontece, pede ao deus bom que se manifeste se for o caso, mas não espero. Ele pediu que sentássemos na posição requisitada para aguardar o colapso dos rins ou vesícula. Tudo isso ele recebeu ali naquele momento no interior da copa. pronto e suave, pensou, com as mãos sobre os joelhos simples. O que seria pouco a pouco ao longo de um ritual desconhecido? estávamos por esperar. Mas então, cada aposta ali poderia figurar como um novo sofrimento sem que ninguém soubesse. Mas era, acima de tudo, a purificação. Aliás, alguém estaria sabendo fora dali? No corredor, na passarela, no interior do tanque? provavelmente não. Olha a nuvem sombria. Não podemos levantar nem mesmo para verificar, temos de realizar mais de uma dúzia de procedimentos simultâneos sem saber aonde eles levarão. A janela foi silenciosamente aberta para que ninguém pudesse perceber. Uma ratoeira paira sozinha sobre a cômoda, ao lado de restos de comida. Moscas secas caem do outro lado, o vapor floresce as orquídeas, as larvas secas. Olha a nuvem sombria, precisa incendiar cada fragmento do planeta. Todas as grandes infinidades, esse pequeno desenho no asfalto, o funcionário designado não passou para consertar. flores rastejantes, coisas ovaladas, carne decomposta nos sulcos do asfalto, e eu agora sou culpado por ter regurgitado? sem que ninguém perguntasse o que estava ocorrendo? Pontas soltas não desfazem nada do que foi feito janela acima. uma multidão secretamente atinge o prédio ao se deslocar em manada, compensamos com os comprimidos esmigalhados no fundo da garganta. não fez nenhuma diferença, meu deus, a árvore sequer se desloca. não entendo? Um casco bem cuidado, um rosto polido, no espelho de baixo, ali você conseguia terminar, poder sair em paz consigo mesmo e sorrindo. corta cada pedacinho aqui dentro e espera terminar? Por favor, espera. Eu estou disposto a sacrificar tudo por qual rosto ou semente? O ano acaba com tudo. Absorva minha pedra, traga as mãos até a barriga fria; por favor, me envie a ostra cônica. Desista do meu osso, siga em frente sem nada (tudo). Pedais no colo, eu entorto os ombros e pescoço, sigo o suspiro mais silencioso até derrubar as prósperas edificações, e a coisa se manifesta. Ondas não existem. perfazem, contudo, a sala. um riso de criança espoca quietinho no canto, algumas velas já acabaram de roer. O ritual se desenvolve em uma meia dúzia de estágios que desconhecemos. Temos de nos submeter a ele por precaução, antes que toda sanidade se perca em definitivo. Quando se olha com um canto do olho, as frutas secas aparecem penduradas na escada. ele já estava quase morto, olhava e pedia por um sofrimento menor. Apalpamos seus ossos com algodão úmido, não ligamos para os olhares de indignação na mesa, ele perde muito sangue em meu ombro e nesse momento é preciso amaciar sem nada, sem suspeitar. sem dedicar até depois mais tarde esse sonho para mim. Mas o ritual é exaustivo. Corta a árvore até o talo, a estrutura dissolve como meu corpo, sem que ninguém olhe. eu observo transcorrer. Na estrada, no caminho para a floresta. Um anjo-nuvem se desloca, estou um pouco cansada e não apago. Já morri há mais de cinco anos, não volto, me perco na estrada. trago mais carcaças para o ritual, distribuo as cápsulas de sono aos ratos que esperam para mordiscar minhas entranhas. peço a eles que me deixem passar até a próxima. Não me calo, espero que não se sintam efusivos demais para viver. a vida é só um rastro fraco, intrépido. O tempo voa dentro da câmara, doze horas mais tarde tivemos de trazer mais carcaças para que todos pudessem comer. Aos poucos estou voltando, ou é só delírio? Alguém na mesa me pede para que corte as libélulas, me assusto e deixo a faca cair. há uma ostra aqui ao meu lado, ela sussurra em um dialeto que eu já dominei, mas esqueci. Continua sem empurrar. Cada pequeno rastro não segue a estrada, eu rezo para que eles voltem à superfície e para que, segurando minha bacia, eu possa caminhar. não sei se é o melhor modo. Diamanda Galás mastiga meu globo ocular ainda vivo. estoura em lágrimas finas que escorrem e deslizam pelo queixo e abaixo. A ostra azul cimenta meus braços (que já estavam amarrados), e eu apago. Acordo em um estágio ainda mais macabro com os crânios sendo cuidadosamente deitados sobre a mesa, olhando para mim. eu cubro com um pedaço rasgado, subo sentado a ossarina, peço que me deem o extrato mais concentrado para agilizar aquele ritual maçante. depois eu esqueço, despejo meu sangue de volta dentro corpo e volto a respirar. Então me arrependo, caio azul de sono. Pressinto o ar achatar-se sobre a minha cabeça, respiro meu próprio sono hipnótico. Cozinho todas as membranas em uma panela funda, em fogo baixo. Deixo minhas vísceras em uma caixa na portaria, apenas creio e continuo, agora sem pensar em nada. Alguns lapsos de memória ou linguagem fazem apenas sugerir que nada existe, que a realidade é quebrada, que não vale a pena existir, etc. Então é possível crer em todas as coisas que me destroem. eu sinto seus ossos sem roer. Quando chega a madrugada, todos já estão dispersos demais para ouvir o que sussurram os demônios, solto ruídos imperceptíveis já sem paciência, perco um dente cada vez que o vapor sobe da cozinha. Assa um pequeno bebê roxo até tostar. Respiro a maciez tóxica do meu horizonte, espero até acalmar. Ninguém escapa e eu sinto medo pela noite, peço a eles que não soltem minha ostrinha. Ela deve navegar. Deve navegar sozinha. Digo a eles, sempre que vocês rodam eu espero meu ombro deslocar. não digo nenhuma mentira. Os anjos destroncam meus braços e mordem minha cabeça em chamas. Só assim posso trabalhar e viver em paz. Após o ritual, vigiei e orei por quatro dias inteiros até o solo afundar levemente, e eu espero assimilar. Não reconheço em ninguém uma flor, uma penugem. Olho em volta dos olhos também. As frutas secaram tanto que caem no chão e se partem como torrões de açúcar. Espero no desfiladeiro. Ele ainda aquece meus ombros/estamos unidos por um cordão ainda muito frágil (que ele já macetou). Consigo rir sem que nada na atmosfera indique uma floração. O que faço com seus ossos no fim do caminho? Não, essa não é uma pergunta propícia nesse momento. Não estamos preparados para a volta dEle. Não sei esticar. Diga a ele que não acredite em mais nada, não sei o que estou fazendo. Não me deixem engessar por pena, não esperem até que eu colha tarde demais. Outras três horas passam, eles entram, abrem os armários, esfarelam os bulbos de alho, enfrentam os besouros secos, esparramam o sal sem perceber. A fumaça do fogão é excessivamente ácida e corrói minhas mucosas brilhantes. Escorrego em um precipício até perder metade do crânio em uma pedra manualmente talhada. Sei e consigo ver, mas não acumulo nada por medo que minhas articulações frágeis se rompam. Passo a cuidar melhor do corpo já cortado pela metade, não abro mais nada sem antes saber muito bem a procedência. Por exemplo, já consigo me deitar por conta própria, sem desmaiar. Cobre minha crista com sua indiferença azul e pálida. O outro globo ocular não mastigado é um creme claro e aveludado. Recubro meu gordo espaço com a poeira desencaixada das flores, com as sementes de antes. Monto minhas sementes dentro do crânio. Se voltarmos até o alto daquela montanha, ele estará esperando por nós? Ele nos sujou com sua indecência, estamos para sempre marcados com um sinal invertido na testa, e assusta cada canto que possamos entrar e olhar. Mas, se formos até a montanha, ele estará esperando por nós? espero que possa deitar, arrastar minhas cabras e deixá-las evaporando. Já não sinto nada nesses escombros, a tentativa funcionou? Eu deixo de existir e não quero mais voltar.   

Mas qualquer porta está aberta? Depois do ritual eu espero que ela se manifeste. uma luz. Uma sombra macia me segura quando desmaio. Não olho, não escrevo, não percebo. estou tão feliz que mal consigo gritar, engasgo com minha voz. Procuro o pâncreas no jardim para guardar de volta, passo por períodos de sono ou sofreguidão. Não entendo sem andar, estou prestes a chegar ao lugar específico. Não sei se algo orbita em volta de minha placenta pálida pendurada no varal. Abre meu olhar rugoso. termina a lista de acontecimentos para hoje, o espécime depositado no aquário, a rolha dentro do envelope, a geladeira partida, o terreno, o casco renovado. O que fazer com todos os dias que passaram? A flor do algodão se parece comigo? Olhe e me diga. pare de rir, pare de rir e me diga. ela se parece com minha cabeça esmagada? olho para baixo e é inevitável sorrir, o desespero é tudo que existe nessa concha. obrigado por me mostrar a passarela que atravessa a rodovia congestionada, obrigado por me conduzir até ali. encontrei cogumelos, subi nos troncos e caí, você riu? não. eu não me ajudei também. não quis, mas continuei, era levemente frio. esse tempo está devidamente guardado. como dosar as memórias? eu sinto o ruído espacial, algo leva o pêndulo ruidoso. ele virá comigo, comeremos amêndoas escuras! comeremos até vomitar. O final é leve, lúcido. eu respeito seus olhos, construo você com flores e wakame. trago suas flores comigo, espero na calçada. eu despejo e assisto o tempo roer. não espero mais nenhuma asa. trago as sentinelas asmáticas para que não deixem esse fundo de ostra evaporar. trago as plantas alimentícias não convencionais agora já macias, murchas e cadavéricas para jantarmos juntos em uma celebração sob a lua cheia. cubro a cavidade dos meus olhos, me recuso a acreditar.