domingo, 18 de outubro de 2020

enquanto o espaço estiver morno



Eu gosto que você esteja aqui comigo e pacientemente me ajude a me recompor, a propor estratégias inovadoras para soluções mórbidas e infrutíferas. O meu barco é amplo demais. Ao nosso lado, uma ostra ornamental de jardim e mais nada. A grama estufada é uma almofada onde qualquer lesma ou pardal pode encostar e empreender. Eu estou pensando, mas pouco. Você me olha na estrada, existe uma pessoa sua que está sentada. A crise é agradavelmente sem precedentes, eu devo ligar para alguém? O sacrifício é contínuo, dispensável. A sensação é de um obscuro desconforto intermitente. Eu seguramente acho, mas sem muita certeza, que estou prestes a descobrir. Você suspeita ao meu lado, me encanto com qualquer coisa que você consiga dizer ou omitir. Eu tomo conta das nossas crianças que são pequenas bactérias gordas e não incomodam. (Ele me escuta pacientemente, não move nenhum dedo para cancelar, não torna o momento mais aprazível ou palatável). Eu não entendo, mas eu jamais diria alguma coisa a ele que não fosse para ofender ou cindir. Meu processo é estar sempre dentro do osso, sem sublevação. É sempre enganoso achar que existe uma pessoa no pasto, mas compensa repensar em outros motes, outras vias, com ou sem sucesso. Não é obrigação de ninguém observar nossa vida patética. Eu encontro nesse ondular extremo minha própria face espelhada, mas agora mais velha e pronta para ser transplantada no quintal. Meu sintoma está na fila de espera e ainda não foi vacinado. 

No sonho, você é quase você, mas não é, você foge de mim até se transformar em um outro. E, enquanto outro, por que ainda estaria aqui? Eu não me lembro de que estávamos caminhando. Você ameaça sair se eu não estiver à sua espera. Você sabia que tinha o comando da casa inteira. por que abdicou de seu reino? por que não levou ao menos um saco de dormir? Você permanece severo comigo e não me devolve nenhum atalho. Saímos juntos no espaço morno para olhar o movimento, dar uma pequena volta na quadra, comprar um envelope de dorflex. qualquer coisa simples demais é de muita serventia. Podíamos até mesmo estar e permanecer em silêncio, sem combinar. O pasto está incomunicável. Se você fizer questão, podemos conversar sobre a guerra do Paraguai? Eu tenho mesmo poucas palavras para emprestar. O excesso de sono não me atrapalha. Pelo contrário, sigo arfando dentro do sonho, continuo trabalhando enquanto durmo. A situação ameniza pouco a pouco até o extremo do insuportável. Sou visitado pelos elefantes mortos de Botsuana/passa um aro extremo sobre minha cabeça enquanto as patas dos animais são carimbadas na testa para abençoar. Acordo aterrorizado com o rosto de silicone de Carlo Acutis me observando. Todos os ossos entram na fila e são moídos ao despertar. Eu não sabia onde era o começo, eu não estava feliz (nunca estive), ainda que você, como poucos, tenha aprendido a sair daqui sem sequelas, sem estrias. Eu não espero mais um sinal em silêncio. Se eu tiver que entrar em alguma dimensão para encontrá-lo, você poderia fazer o favor de me informar? não posso entrar na dimensão errada à toa. Tenho coisas demais para resolver em um curto período, e qualquer dia ou minuto perdido é uma sombra que ao mesmo tempo se acumula e me escapa. Por favor, tenha cuidado com o meu sintoma. Tenho um protocolo a cumprir, uma ossatura a preservar, e espero com sinceridade sua colaboração no processo, enquanto o espaço estiver morno.   


 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

obrigado a todos que submergiram




Hoje não me reconheci, comecei a lavar a louça pelos talheres. Pensei: se ele estivesse aqui comigo, então ele estaria aqui comigo, e eu não reclamaria de nada além do habitual, a dor nas costas ou o incômodo constante diante das pequenas tarefas deixadas por fazer. Um dia como hoje não é grande coisa também, e eu e você não saberíamos o que fazer com os destroços, mas secretamente poderíamos gerar algo para estiolar, para escapar de um buraco absurdo no qual fomos gentilmente depositados. Se não existe nada nem ninguém, como saímos desse espelho? Juntando uma coisa na outra, sem colar? eu pergunto em prantos se alguém saiu de banho tomado, se alguém desinfetou os guardanapos um a um até eles esfarelarem. Por favor, alguém desceu do carro quando viu o animal morto parado? alguém me trouxe um rinoceronte filhote para cuidar e eu só vi agora? Ele pode ser ajudado a transpor até outro oceano. Nada é tão interessante quanto parece. Tem algo na linguagem que é irritante por si só? Mas, e se o potencial não for todo esse? O lugar foi depositado como que para respeitar. Sem saber, eu deixei que eles respeitassem cada espaço, e parece que eu não tenho como ajudar, não sei qual urna para depositar uma palavra ou um grunhido que possam interpretar como uma intervenção. Alguém por favor abre um espaço para um neurótico passar? obrigado. Eu receio que nada seja tão simples assim, que eu possa me colocar no seu lugar, mas sem ficar por muito tempo. Não sei o tamanho da fatia do desastre que já passou, e se o que está por vir é só areia muito fina. “Convenhamos que nós já chegamos mais longe do que imaginávamos que chegaríamos”, isso foi muito especial, me foi dito no dia cinco de junho e eu cataloguei com cuidado, espetei no meu quadro como um inseto fossilizado, meditei em silêncio sobre tudo que não entendi. Como aquelas verdades em que, de tão manifestas, batemos a testa ao passar. Algo não me deixa engolir, já caímos para fora de qualquer lógica assumida, eu senti que estávamos esperando. Um avião com noventa toneladas de lixo hospitalar passa por cima da minha cabeça. perco o timing quando você me diz: aqui cresce seu osso em alguma parte. Sim, eu confesso que estive perto de todos eles que estavam nascendo. Todos os dentes. Enquanto eu lavava a panela nova e intacta sem alguma dificuldade, Laurie cantava em meus ouvidos: this is the hand, the hand that takes. Eu estou requisitado a responder sem nem mesmo saber como serão as próximas horas, os próximos dias, e assim por diante. presumo que meu amigo salsichas já não exista em nenhum território. Ele me conta uma anedota que eu não entendo e ele não repete. Eu acaricio seu pescoço, penduro um belo colar com um pingente que de longe parece uma rocha magmática comum, mas de perto é só uma fatia de broa de centeio ressecada. Se ele estivesse aqui, estaríamos procurando por todos aqueles que estão dormindo perdidos, terminaríamos macetando-os em um ritual maciço, previamente agendado. 

Agora eu começo em um novo oceano (mas é o mesmo). Não me proponho a caminhar, mas uma coisa macia gruda em minhas costas. ele era muito engraçado, eu ria dele pelo menos uma dúzia de minutos por dia. Agora eu tenho que insistir um pouco mais para que o bonito tente regurgitar. Pois sim, eu espero ter ajudado. ninguém me mostra se há por onde ir, se há algo a que posso me agarrar de modo recalcitrante. Mas, meu amigo, com toda sinceridade, você estava descascado e ruim. Você percebe que, antes de cantar “you’re trying too hard” pela segunda vez, ela ri despretensiosamente? Ela não se aguenta e ri, e essa é toda reação ao percebermos que o esforço é, simplesmente, absurdo. Não espere nada diferente, mas posso completar uma respiração melhor e simplesmente murchar em silêncio. Estamos adentrando agora o osso ruim, mas que pode ser piorado, desde que se saiba todos os procedimentos de antemão. Coloca na sua mochila o andaime desmontado que será levado para o campo, dorme por catorze horas seguidas e se enrola em um tronco do sonho para simplesmente não voltar. Sonha: a vida pode ser bem mais simples que isso. E nós até podemos existir. Dorme, meu docinho, esse inferno não vai acabar. Você está cada dia mais crescido e até cai dentro dos milênios. Nada será como antes, os cadáveres se amontoam na calçada, a existência deles é seu próprio desmanchar. Uma ostra velha some no firmamento. Um outro olho despenca e desmancha. Você olha calmo no meu olho e eu escondo. E, por um simples descuido, esqueço de esquentar o café, de trazer o peixe para a grelha, de telefonar para os familiares mortos, de consumir o Rivotril empanado e frito ainda quente. Esqueço-me de todos que estão morrendo nas casas, nos jardins (é tecnicamente possível morrer em um jardim?), enfim, não sei responder com exatidão. sim, adequadamente eu não sei te informar, você vai me desculpar, com certeza. A encomenda está parada e não quer aterrissar até a minha casa. Não me informe se você estiver dormindo, mas pode retornar minhas mensagens dentro de alguns meses se assim for melhor pra você. Obrigado a todos que submergiram. Eu perco meu osso (não estou entubado), você morreu e eu não dormi. O sentido de morrer está dado, vamos completar. você não ia prosseguir por muito tempo, talvez no máximo uma década. Eu rio quando me lembro de uma carcaça sobre a minha cama, sobre mim, ou me olhando no sofá sem ruídos. Escorre uma pequena lágrima insone que pode ser confundida com soro fisiológico ou chuva ácida. Como chegamos nesse ponto, meu deus? As pendências se acumulam, as pessoas me informam para esperar, ao menos agarro meu título e vou-me embora. Me pega por aquilo que podemos construir juntos. Um buraco em meu estômago mole. Eu encolho todas as minhas vértebras e deixo você sair, enfim. Ao vento quieto. Deixo de existir, ao vento quieto. É quase amanhã. Eu vejo a forma com que eles digerem a morte dos pais deles, e penso se vou digerir assim a morte deles também. Em minha floresta onde estarei um dia, junto a meus gatos, minhas folhas, meu osso de estimação, minha tartaruga empalhada, meu pasto inteiro onde eu mesmo possa pastar todo dia ao acordar. Sim, isso tudo é tão distante, mas tão presente... Meu irmão está certo, não há nada lá fora. Será que no fundo ele sabe mais do que todos os outros que ainda estão tentando? É preciso averiguar com uma pesquisa muito delicada, para a qual não estamos sendo financiados. Me faltam palavras para viver, não consigo me enfrentar, todas as lembranças dormem em silêncio. Me peça para ir desgrudando as coisas devagar, senão termino em poucos minutos e passamos o resto do ano sem nada para fazer. Mas uma coisa alegre se abre na varanda, quando eu já tive uma (já tive?). Um urso cai da escada e é isso que estamos assistindo até agora, o período inteiro está amassado, é muito bom o tempo livre, é bom o tempo que passamos desintegrando aqui ou no quintal, preparando uma salada de miolos, passando os panos úmidos pelo cilindro até secar, amassando o caldo para o purê, fazendo tudo com muita, mas muita minúcia, o dia é limpo e quase não há som ao redor, ele mesmo raramente falava alguma coisa, só quando queria um cubo de gelo para brincar. Foi-se. O bloco de sucrilhos umedecido pela manhã, os cotonetes que escondemos e não podemos encontrar (seu uso já foi banido, mas ignoramos). Mas, pelo amor de deus, ninguém aqui colabora, um inseto acha que precisa bater à porta quando quer entrar, são formalidades excessivas que vão se acumulando e desativam qualquer vontade que tínhamos (não tínhamos) de continuar. Eu desaprovo (coloco as mãos na cintura e me mantenho em silêncio absoluto). Normalmente eu venho até aqui e fico confuso. Você tem que se juntar a esse time, você não pode esmorecer, não pode jogar fora todo trabalho feito e acumulado etc. Você precisa pensar nisso com mais calma e cuidado, retorcer os onze anos até que escorra o resíduo aproveitável. Você não devia se isentar, por deus que não. Você fez tudo isso com seus próprios braços e pernas, olhe e se desespere, mas com calma. Com sua ansiedade orgânica, seus ossos guardados em ziploc.




terça-feira, 31 de março de 2020

Às vezes vejo um vulto e me alegro




Pantufas me ligou. Atendi em prantos porque já sabia do que se tratava. Ele me pede para assinar os formulários empurrados por debaixo da porta durante o temporal. Respondo que eles já se desmancharam por completo, que a verdade é mais (ou menos) firme do que parece, e que definitivamente não me preocupo mais, pois desde que me ensinaram a respiração diafragmática, não há nada que eu não esteja preparado para enfrentar ou perder. 

Ele faz então um comentário que eu adoro e vai de encontro com a minha ostra. O meu amigo não me espera, tenho certeza, mas eu chego sem avisar. Coloco as malas no centro da sala, desembrulho as linhaças embaladas a vácuo, semente por semente. Puxo o abacate que derreteu dentro do isopor. Penso: se eu chegasse mais cedo, ele ainda estaria aqui? Um ou dois anos mais cedo? eu pedi permissão para passar para o próximo degelo. Agora lembrei que ia escrever e retirar todas as pálpebras. Pantufas está aqui e não me passa nenhuma informação ruim. A solidão nos quebra por inteiros, mas, no meio de uma pandemia, ele não me liga para passar uma informação ruim. O mundo continua ótimo, as pessoas se sentem amadas e reprimidas. Eu me divirto com a pessoa que nunca serei, mas me fortaleço com os blocos de terra que colho e mastigo direto do quintal. Se ele estivesse aqui, correríamos pela sala juntos em busca de algo para jantar. Eu pediria a ele que trouxesse outro pardalzinho ensanguentado para preparar uma refeição adequada (a massa seria qualquer uma, a abobrinha eu adicionaria de qualquer jeito para diminuir o índice glicêmico, conforme minha amiga me ensinou). Beberíamos qualquer coisa sem álcool e sem gosto, pois no dia seguinte eu saio para medir minha fosfatase alcalina bem pela manhã, e depois me liberam para mijar todo chá que consumi ao longo da semana inteira que durou dezoito dias e nunca terminou. Quase piso em uma pomba na calçada, ando como se alguém me perseguisse, e assim deve ser. Penso em tudo que poderia ter feito, nas pessoas, coisas e pedras que poderia ter visitado esses meses todos antes da explosão. Tudo é tão óbvio que não consigo acreditar. No meu sonho, algumas noites mais pra frente, eu fazia um esforço ridículo para me mostrar compreensivo com as coisas que eram despejadas como uma verdade auto evidente por um velho que me recuso a nomear. Com muita dificuldade, eu tentava fumar um saquinho de chá usado. A verdade é que tenho muita esperança (eu tenho toda esperança, sim). Esperei que ele estivesse aqui para me ajudar a empilhar. Fui barrado e não me ajudaram a estruturar um caminho, sendo que nenhum dos dois estará aqui comigo, nunca. Pantufas me olha atônito, me diz que é possível continuar assim, sem coisas para dizer, e que tudo bem não dizer, não é um absurdo. Como vamos nos preparar juntos para essa guerra? Vamos acumular todas as armas para existir? Você me ajuda a arrancar um cano da tubulação de água, vou polir meu guarda-chuva, reunir as facas de manteiga, as tesouras sem ponta, os gravetos. Todo armamento é coletado dentro de alguns dias. não sei como fazer sua armadura. Recorto uma caixa de ovos, costuro com arames de saco de pão, prendo em seu dorso com elásticos, você me olha cético, nunca fabriquei material bélico na vida. Sabemos que qualquer erro mínimo pode colocar em risco nossas vidas que já estão acabando. Você mia alto como um ganso quando encaixo o pote de manteiga na sua cabeça como um capacete. Não conseguimos levar a sério nada disso, mas dessa vez é um ser morto-vivo, infinitamente menor que os sapos e cabritos que enfrentamos das outras vezes. Você se descontrola por um instante e ameaça fugir outras vezes, morrer outras vezes, sem deixar sinal. Seria tudo mais fácil se apenas assinássemos um requerimento para não sermos infectados? As autoridades sanitárias dizem que, no mínimo, isso não funciona. Mas Pantufa é sua própria autoridade e não se curva a mais ninguém. Por um segundo ou um século nossas armaduras devem perdurar, mas o quanto baste. Eu me movimento de maneira tosca e você já desiste de emitir qualquer juízo, você sabe que sou infinitamente mais burro do que você, e nesses seis anos você teve o cuidado de desenvolver toda complacência para me ver executar todo tipo de asneira sem julgamentos, e sem nos colocar em perigo, só que agora é diferente. Nosso inimigo não está escondido por trás das urtigas, a solidão é limpa e extrema, estamos extremados e você me joga toda responsabilidade por existir. É verdade, era impossível estar aqui o ano inteiro. Você podia ter me enfrentado, mas entendo que sua estratégia seja mais sofisticada, mesmo que o fim tenha sido torpe. Eu odiei cada segundo, sim, mas não esses em que estávamos aqui. Você executava a mesma sequência de movimentos sempre que entrava no quarto: contornava silenciosamente a cama até o lado direito (esse passo era tão silencioso que muitas vezes era imperceptível, como se a sequência começasse só no passo seguinte), pulava na cama, passava por cima da minha barriga como se nada estivesse acontecendo (e não estava mesmo, nunca), seguia até a outra ponta, até a mesa de cabeceira do lado esquerdo, olhava por ali, suspeitava, permanecia tempo o suficiente para parecer que aquela etapa era tão necessária quanto as anteriores, olhava para mim e voltava, sentava ao meu lado, dormia, entrava nas cobertas quando necessário, deitava no pé da cama quando queria. E assim era. Às vezes, muito secretamente, você parecia me pedir para não continuar, e você estava certo, mas isso eu só observo retrospectivamente. Eu não obedeci e você então me mostrou. Eu olhava por cima dos seus ombros uma luz alcançada para poder dormir. 

Quando você chegou tão minúsculo, dentro da gaiolinha, tão miseravelmente pequeno e molinho, levei você até o quarto, não conseguia sequer acreditar. Ele tinha um laço azul no pescoço, como um presentinho mole e esquivo, mas doce. O que ele pensava? Ele não chorava nem sorria, apenas pulava de um lado para outro do assoalho. Ficou alguns meses dentro do quarto até que as outras janelas fossem teladas e ele pudesse conhecer e se apossar do resto da casa. Eu devia ter suspeitado que alguém estava prestes a macetar minha única alegria, mas eu não tinha como suspeitar. Não tive condições de criar um dia de dentro de uma palavra. Você semeia minhas mãos do jeito errado e nada cresce. Às vezes vejo um vulto e me alegro, são pequenos momentos que fazem o dia valer a pena, ou quase isso. Alguém aparece para me entregar um produto que não pedi ou uma informação que não solicitei, mas que será importante em algum momento nessa travessia pelo horror com corpos empilhados nas calçadas. Minhas mãos têm estrias ou só estão desesperadas? Ouvimos seu miado todas as tardes (sei que não estou delirando, pois não ouvi sozinho), mas será ele ou outra pessoa? Ainda subo no telhado para ver, isso eu prometo. Enquanto isso, deixo os cabelos de molho na tigela com leite que ele nunca consumiu. Ele me envia um olhar perverso e diz, em tom de autoajuda: “você precisa acessar um eu interior mais maciço, mais fibroso, em que cada paulada seja dada para matar”. Meus lábios racham antes mesmo que eu consiga processar toda a mensagem, mas ele só está sendo metafórico, me dizendo para ir atrás das coisas sem esperar por nada ou ninguém. Ainda estou infusionando dentro da cisterna, com os braços destacados do corpo. Peço a ele que se apresente a todos que estão dormindo, é uma questão de educação (que eu não cumpro). Ele então me olha mais calmo, me pede para não ter vergonha de nada que acontece. Aparentemente, tudo o que ele quer é que eu endureça e cresça de uma vez para não precisar sofrer. Ele tem o cuidado de retribuir cada coisa dada, até mesmo o que faltou. Eu adorava dizer que não há um único poste plantado no meu quintal, e você não se aguentava de tanto rir, você ria das coisas que eu ia colocando sobre a mesa. Me desculpe, eu não devia tentar ser uma pessoa, mas não consigo segurar. Minha linguagem é muito limitada, eu sei, não consigo expressar muita coisa, você até cansou de me desafiar. Eu quase me surpreendo com você de novo. Eu sigo até uma próxima hora, cozinho coisas no vapor. Esquento novamente meu chá de sertralina e coloco as nozes para moer no caldo que utilizarei mais tarde, só quando a semana virar. Você era a pessoa mais engraçada que conheci. Você me encontrava com espanto sempre nos mesmos lugares (eu não tinha criatividade nenhuma para me esconder, meu mundo é onde nada acontece). Quantas pessoas ainda pedem para macetar minha cabeça e eu não permito? O mundo continua ótimo, eu só recebi um telefonema ruim durante um temporal. Mas tudo mudou sem o meu consentimento, tudo mudou sem que sequer chegasse o formulário para eu assinar. E assim as coisas vão sendo empilhadas umas sobre as outras como conchas, formigas ou células tumorais.