sábado, 29 de dezembro de 2018

Testamento



O meu grande amigo acena para mim. Ele caminha suavemente empurrando os ossos para frente, quase como um de nós, mas macio como em uma nuvem. Eu componho suas bochechas. Então eu beijo suas bochechas, troco a posição das pernas na sala, termino por incendiar as cortinas que ele já arranhou e torceu enquanto eu não estava aqui. Eu deixei de estar por tanto tempo que ele cresceu quase do tamanho de um boi, um animal parado, um automóvel, um amontoado seco de ossos, uma cavidade. Eu percebo seus olhares de sono, ele está depositado junto à mesa para participar. Ignora uma xícara de café, uma fatia de bolo. Ele me pede para levantar o rosto, endireitar os ombros, manter a postura ereta, esperar, não esmorecer. Eu continuo colapsado, toco sua face, escovo sua crina na primeira hora da manhã enquanto ainda estou sonâmbulo, mas prestes a despertar. ele rasteja pelo meu ombro. eu posso desejar estar amassado. Ele tenta me convencer, com os procedimentos mínimos e sem qualquer rigor, de que sou uma pessoa. Eu não consigo acreditar em nada do que está acontecendo. Eu choro de sono, ele ri da minha sombra, um crânio avulso também olha e ri, mas em silêncio. Eu estou envelhecendo mais rápido que vocês, digo. Não consigo comprovar agora as minhas suspeitas, mas já passei por experiências similares, perdi uma aposta para aqueles que estavam escapando pelo ralo. eles surgiam de cada poça implantada no asfalto, bem na minha frente, e de dentro do sono eu podia macetar um por um e depois ser alcançado por minha própria asfixia. Trouxemos todas essas opções como em um cardápio, e aqui eu não existo, repeti. A vida virou um caldo confuso, cheio de vértices. Esperamos pelo sinal luminoso do espaço. aqui dentro da minha casa eu espero amornar os dias, eu espero as crianças voltarem. Elas me trazem presentes, eu enlouqueço em poucos segundos. Os médicos entram e despejam sobre meu crânio um caldo fervente de uma jarra partida. Meu amigo me olha ainda em silêncio. Eu peço para que, enquanto espera, ele coma seu ovinho. A coisa aparece apontada para mim, eu desapareço dentro das árvores, espero por um universo, com todo arrependimento do mundo. Não estaremos por aqui por muito tempo, não há lugar para nós, Então forjamos outro universo para sentar. Ele permanece comigo sem que a passagem de tempo nos atrapalhe. é muito bom estar vivo e com todos os ossos prontos para nada. eu estou prestes a dilacerar as cordas, cortar o cordão das flores. Eu coleto os peixes e deixo-os sobre o asfalto para que ninguém diga uma palavra ou se irrite. Não suporto seus olhares de rancor, de sombra. Eles, nesse exato momento, estão dispostos em círculo, cantando coisas sem nexo, esfregando as patas na parede. Minha boca está quebrada, não consigo sintonizar uma próxima partida, a percepção requer um novo instrumento, uma folha que possa ser usada como escudo, um galho partido que possa ser usado como espada. Uma nuvem levanta e interrompe o fluxo, lembra as coisas perdidas, despejadas, decompostas. O que poderia ter sido, o que quase alcancei, o que construí por poucos dias, o que construímos por poucas semanas, assim foi, sem nenhuma palavra para colocar ali. E se coletamos todas essas palavras e elas não ocupam um quinto sequer do espaço? sem poder registrar sequer, todo desconforto possível em nossas mãos que mal se tocavam, etc. Ele me alcança cansado, me incentiva a continuar. eu então descrevo todos os rostos pela manhã enquanto espero. cada decepção, uma por uma. O dia é calmo, as pessoas caminham pela estrada de pedra, o pombo reenvia as conexões, eu desisto de viver, caio da escada e quebro um braço ou dois. Ao que eles chegam para me ajudar a levantar e respondo que estou apenas calibrando minhas articulações. todas aparecem infladas, inutilizáveis. estou incansavelmente descolado do universo. encontro uma pomba no chão, peço para que se anime. Doze horas passam novamente, a cidade escurece, some. Acende um sinal luminoso no céu. Todos chegam para comer empovorosos. Desistiram de chegar mais tarde, olharam o caminho cinzento. Durante todo esse tempo eles estiveram prontos para existir, mas nada aconteceu, nada aconteceu sem a nossa permissão, tivemos um controle excessivo, o controle impediu que aparecessem brotos, formas torcidas, rostos pálidos, cascas sem flor. O tempo transcorreu vazio dentro de cada quarto: paredes mofadas, fumaça de incensos cancerígena, muita alegria no interior de cada concha lascada. Como passaram esse tempo? eu adoraria saber. poderíamos fazer uma reunião com petiscos, ansiolíticos e charutos. Vocês poderiam coletar todas as coisas que evitei, sentaríamos em roda, vocês me contariam uma história aleatória, sem pensar, como em um fluxo, e no final seria minha própria história porque qualquer peça poderia ser desencaixada e recolocada em outro lugar sem nenhum prejuízo. o absurdo não conhece nenhuma ordem. Naquele dia em especial foi depositado sobre minha cabeça aberta um colar litúrgico, uma concha macia, parecida com nossos avestruzes pequenos que criamos de manhã. Dois deles foram depositados também em nossa palma. Polvilhei seus resquícios, comecei a chorar sem provas, eles me deram o coelho para macetar, chorei por ele com quem eu mal conseguia falar, depois adormeci, morri em silêncio, com uma curvatura de moscas sobre minha cabeça cicatrizada. Então, quando estou no palco, todos me olham com muita paciência. Pensam: talvez você não vá muito longe, mas esperamos que você possa sair intacto. Eu não posso então nem me virar e já sou rotulado com alguma porção de ossos crus. Ora. Ele se sente subjugado por uma pequena ostra incrédula que também não move meu chão. Cantamos para os cadáveres das crianças que acordam um a um e se juntam a nós para alegrar. O mundo se transforma em um novo inferno, os círculos ardem ainda mais, não entendemos como é possível viver, solicitamos o manual que já vem incinerado. Propomos uma nova reunião para discutir os métodos, selar os propósitos, alinhavar os instrumentos, desistir de um sonho. Finalizamos as concreções. Perguntei a todos que morreram se desejariam existir por um segundo a mais bem na minha frente. Mas eles já fizeram as malas, coletaram as canecas, as escovas, as capas dos botijões. Outro cadáver levanta e me cumprimenta, eu me alegro, derrubo o vaso e espatifa. A realidade é só um osso difícil de roer. Se eu quiser continuar, ele não pode me impedir de viver em nenhum momento. Não posso deixar nada por fazer, não posso permitir nada no interior de uma ponte. A corda é esticada dez vezes para alinhar as fibras. Ele se alegra demais para morrer, ninguém mais suporta o quanto a pele transpira macia, ninguém suporta que ele sorria tanto nessa circunstância, nesse lodo dramático. meu amigo salsichas está sentado e não aparece. Eu recomendo que não apaguem essa imensidão inteira. sem que você percebesse, eu estive ao seu lado, esperei você dormir para quebrar os pratos e talheres, contei as bolhas de mofo no teto, aguardei o carro se aproximar. Eu estive dormindo, confesso. Sei que você não podia imaginar. Eu fui até a próxima boia (só para) não dizer seu nome. Você invadiu como uma coisa extrema, soberba. Mas tudo é sempre muito divertido aqui nesse pasto. Não deixei de rir nem mesmo depois do tombo grotesco, de cada fraturinha. E agora esse é o centro da minha vida. Você então me ouve dizer que o silêncio, com todas as horas, resiste a decrescer. Porque absolutamente nada disso é comunicável. Os tumores podem ser trançados nos pontos do tricô. Mas eu já não vou muito longe, meu docinho. Estou sentado em frente à estátua há milênios. Eu sinto sua falta, e sei que você jamais usaria um tijolo para abrir minha cabeça, meus olhos, ou qualquer coisa parecida. Então pode ficar por aqui, beber o chá que esfriou. Tornar provável uma nova concentração, uma folha ambígua. O meu grande amigo não acena mais para mim. Agora, depois de todos esses meses, ele prefere não ficar ao lado, ele prefere o lugar mais seguro, e eu lhe dou toda razão. 

Pois bem, sente-se e me peça para continuar narrando porque eu já esqueci. Eu amo cada pedaço, aprendi a esperar, a desmaiar com a cabeça no fundo. Olha, pra mim já deu (e então devo rir até sufocar?). Os anos se seguem uns aos outros, a matéria dos anos é porosa, eu peço que me perdoem atentamente. agora eu desejo que todos vocês continuem nas próximas horas como se não houvesse meu pasto ruim. Pudemos parafusar todas as horas de manhã, quando você acordou. O ônibus passou e dele surgiram ondas que recobriram o ponto com colocações muito precisas. Guardei na mala para poder seguir também. Tomo a palavra para me posicionar pelos homens, pelas estátuas. Percebo que não consigo existir. Então peço ajuda a um poste que me acompanha, sinto os sinais como em um dia nublado no qual as coisas começam a anoitecer antes do horário marcado, uma atmosfera sinistra. Propicio as escadas como folhas abertas marcadas para serem trituradas em um quintal. Convido todos a participar desse ritual desorganizado, em que cada um deve falar o que bem entender e depois, torcendo para que o tempo não mude bruscamente, recolocar nossas esperanças em um baú fundo artesanalmente talhado. Eu também não fui essa pessoa, eu não soube construir coisas já com medo de que elas ruíssem. Mas venha comigo nessa pequena bolha pelo espaço. você está deitado, você se conecta com as coisas na parede, com isso que é uma pessoa que morreu, e depois você viajou até uma ponte e depois outra pessoa morreu, e depois você percebeu os espelhos e outra pessoa morreu, e depois. Mas ainda assim, eu tenho medo que a qualquer momento ele caia sozinho, fique preso na grade, se enforque no puxador da cortina. Percebe cada coisa revivendo? Estufando da terra morna, meus pés queimam. mas os dele são recobertos de uma lona espessa, ele pode caminhar horas ou dias sem nenhum desconforto. Se eu quiser continuar por esse caminho, nenhum deles pode dizer nada. E, magicamente todas as conversas aparecem já construídas, faladas, vividas em cada proporção. Podemos apenas colocar no bolso as memórias renovadas e continuar. ninguém está aqui.