segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Aqueles que viveram os dias

 

Sem saber como começar a dizer tudo, ele simplesmente exclamou apático: “mas que belo dia agora que está acabando”. É claro que ele foi rude, pois eles haviam passado o dia juntos. A verdade é que eles se amavam tanto que a única saída para tanto amor era a morte. A morte seria capaz de fixar o amor como uma verdade eterna e imutável, mas não a vida. Conforme seguiam o fluxo da vida, cada um em seu barco lascado, eles sabiam que poderiam ser separados por ventos que sopravam fortes e confusos, de todos os lados e sem direção definida. Por isso, tudo o que tinham, além do passado e das memórias, era o momento presente, que tremia de ansiedade e desespero. Enquanto fossem jovens, eles seriam ansiosos e desesperados, e só seriam apaziguados quando ficassem acostumados a viver e a envelhecer. Era muito difícil engolir que não havia resposta para nada que acontecia, que as respostas deveriam ser inventadas, e eram sempre póstumas e muito ruins. Deveriam contentar-se, portanto, com a falta de sentido em tudo o que faziam ao longo dos dias, desde botar uma xícara de molho na pia, até começar uma discussão por causa de um cabide ou de uma lâmpada. A vida era tudo aquilo que havia entre aquelas paredes, podia-se livremente cozinhar uma sopa sabor glutamato monossódico ou abrir e fechar uma gaveta. Atividades como essas faziam com que um dia passasse e viesse outro, idêntico ao anterior. Depois os dias ficavam desenfreados, atropelavam-se uns aos outros numa corrida rumo a lugar algum. Quando uma carta chegava, eles não sabiam de onde ela tinha vindo. Se eles eventualmente parassem para contabilizar os anos que os constituíram, o que descobririam? Que os anos eram feitos de unhas roídas e todo tipo de fluido corporal? Pois de que adianta contabilizar o que passou, embora seja só o que nos reste? De que adianta pensar sobre o que adianta e o que não adianta? É preciso coletar os dez mil eventos diários totalmente insignificantes e salvar-se neles. A salvação só pode estar na calda do pudim que não deu certo ou na parede escura de mofo. Além deles não há mais nada, só nossa cara de espanto diante do futuro que vem rápido para engolir a nós e nossas memórias que são só nossas.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Como escrever sobre o desinteresse em escrever?

 

Como escrever sobre o desinteresse em escrever?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

“E por aí vai”

 

Queria ser outra pessoa também, e por aí vai.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Olhe esta samambaia

 

Ela, por exemplo, jamais confessara a um padre que tinha medo de morrer; em vez disso dissera-lhe cheia de intenções e com grande refinamento de alusão: “acho tão mais bonito uma pedra que um passarinho” - com isso talvez quisesse dizer, quem sabe, que uma pedra lhe parecia mais próxima da vida que o passarinho que no seu vôo lhe lembrava a morte, o que, naturalmente, significaria que ela tinha medo de morrer. O padre não entendeu, e ela saíra inconfessada, espantada por não ter tido uma resposta. Havia anos aquela moça não tinha a satisfação de um sucesso.
- Olhe esta samambaia! disse ela para o homem porque uma pessoa não pode dizer “eu te amo”.

 
Este é o drama de Ermelinda, de A maçã no escuro. Tanto quanto nós, ela sabe que a realidade não se encaixa inteira, sem restos, nas palavras. Em geral, as palavras depõem contra nós. Como usá-las, afinal? Quando as pronunciamos, o fazemos com uma carga de memórias, sentimentos e tormentos passados que elas são incapazes de transmitir. Quando falamos, nós às vezes queremos nos falar por inteiros, mas como não conseguimos, falamos as palavras. Quando, por outro lado, queremos nos esconder, usamos a generalidade fria das palavras, que ecoam como um som qualquer, sem valor. Se as usamos, somos mal compreendidos. Se não as usamos, somos incompreendidos. Quando dizemos “eu te amo”, geralmente queremos dizer tantas coisas que o que dizemos passa por banalidade. Quando pedimos para que alguém na mesa nos passe o arroz, as pessoas não sabem que na verdade queremos outro mundo, outro corpo, outra vida, outro modo de existência ou inexistência. Talvez porque, quando dizemos algo, depositamos esse algo diretamente num campo de interpretação alheio, e as pessoas interpretam como lhes é conveniente. Seria preciso dispensar as palavras e viver com base em gestos e grunhidos, o que jamais funcionaria, pois as pessoas nos pedem todos os dias um prato de palavras para comer. Podemos dizer a elas nossa situação emocional recorrendo a metáforas ou nomes científicos de besouros, ou podemos passar horas comunicando a elas sobre a impossibilidade da comunicação. Mas há sempre um problema: se dizemos que estamos alegres, quando na verdade estamos alegres, excitados e rancorosos, bem, como encontrar uma palavra que traduza isso tudo sem passarmos por doidos?
 
É por isso que dou o meu apoio para pessoas que, como Ermelinda, querem dizer “eu te amo”, e no lugar dizem “preciso ir, o sapólio acabou”. Também não culpo aquelas que demoram tanto para dizer, que as palavras apodrecem e se desmancham dentro delas. E aquelas que guardam palavras que cozinham no estômago e causam feridas incômodas. E aquelas que sabem que as palavras nunca dirão tudo. E aquelas que são tão conformadas que nem querem que as palavras digam tudo. E aquelas que são inconformadas e tentam inventar palavras para emoções que não existem. E aquelas que colecionam palavras antigas em diários, memórias ou vidros de conserva.
 
Pois, afinal de contas, nós queremos mesmo que as pessoas nos compreendam? E se tememos que a compreensão venha acompanhada de desânimos e decepções? E se não queremos que nos compreendam porque não queremos nos compreender? E se, por termos acolhido a incompreensão com tanta hospitalidade, rejeitamos e rejeitaremos para todo sempre qualquer tentativa de explicação? E se não queremos nos compreender por medo da tonelada de responsabilidade que cairá sobre nós no momento em que soubermos por que diabos continuamos vivendo? E se fomos nós mesmos que pisoteamos as palavras para que pudéssemos continuar tomando café diariamente com os fantasmas do passado? E se as palavras insuficientes são a salvação que insistimos em evitar?