sábado, 29 de agosto de 2015

En cendres



Cada dia em que começamos a existir, a radiação eletromagnética é inutilmente duplicada e atravessa nossos corpos de uma ponta até outra. Se a roda gira em sentido contrário, então por aqui não podemos passar. O rio está empedrado, cristalizado e morto. O teto está todo coberto com coisas que amamos e deixamos desaparecer. Por aqui não podemos passar. Ali no fundo eles nos olham, sempre opacos e enigmáticos. Corremos por um pontilhado no chão e chegamos até uma urdidura onde as coisas então acontecem. Sentados sobre o caos e olhando, o mundo passa mais rápido. O tempo nunca passa. O mundo sim.

Trazemos para o colo morno os quilos de plantas que antes mergulhamos em um banho suave para um cozimento lento e hipnótico. Quando o tempo quebra, é o som dos galhos secos em delicado incêndio. Pelo pontilhado chegamos a uma área onde as coisas despencam em um vácuo que passa despercebido. Quebramos esses galhos – e ali mais no fundo, enquanto a redenção não chega. Alguns galhos tombam queimados, outros apontam em riste para todos os pontos que as dimensões de uma floresta são capazes de sustentar. Temos de quebrá-los para continuar a travessia que não queremos percorrer. Por aqui não podemos passar. O único modo de partir os galhos é com as mãos secas, e refazer todo o percurso. Vamos adiante, quebrando aqueles galhos? No quintal? Na floresta? Vamos adiante, não olhe para mim: o vento. Uma ostra em cada olho. Vamos, me ajude! Rompa os galhos, aqueles galhos ali em cima, aqueles galhos mais no alto. Não! Não dentro dos ossos! Por deus que não... Ali no alto, sim, isso. Os galhos sim, os troncos não! (afinal, quem pode ser amado no interior de um tronco?). Os galhos mais frágeis (os galhos são a própria floresta existindo em flor suave). 

Da radiação escapa uma faísca que incendeia nossos cabelos com muito cuidado, e confundimos o calor excessivo com uma enorme doçura que ganhamos mesmo sem merecer. Com o cérebro em cinzas, adormecemos durante seis dias e temos catorze sonhos muito saudáveis com: ostras em lata, gatos vazando sangue, barrigas abertas em formato de “U” que ninguém se dispõe a costurar, crianças carregando gansos pelo pescoço, possibilidades fechadas, pessoas rindo sem posição numa mesa, etc. Depois de seis dias acordamos e, diante do espelho, enxergamos a resposta estampada na testa: nós passamos sempre, até o ponto em que nos tornamos um outro. A informação assusta – rimos de nervosismo e alívio. Daqui é impossível proceder, mas também uma solução pode brotar incólume (especialmente para nós, que sempre nos recusamos a ter uma vida além da nossa). Agora o conforto cresce dentro do silêncio como um bolo no forno. A festa logo atinge seu ápice. Já quebramos todos os galhos possíveis e, antes que os outros cresçam, dobramos as camadas de água morna por um perfume que preencha de uma só vez as horas insossas, mas sempre em silêncio: Jasminum (em silêncio), Melissa (em silêncio), Matricaria (em silêncio), Camellia (em silêncio), Rosmarinus (em silêncio), Malus (em silêncio), Illicium (em silêncio), Humulus (em silêncio), Hypericum (em silêncio), Lavandula (em silêncio), Cymbopogon (em silêncio). Cinnamomum (em silêncio), Elettaria (em silêncio), Zingiber (em silêncio), Vanilla (em silêncio), Hibiscus (em silêncio), Syzygium (em silêncio), Laurus (em silêncio). Fim. 

Tivemos um grande momento rodando por esses arbustos mais altos. Aliás, foi o melhor momento que já conhecemos, por isso agradecemos-lhes: obrigado por nos fazer afundar – nos lodos mais mórbidos! Por deus do céu... Obrigado. Seguramente o momento mais agradável que conhecemos foi todos eles rindo e dançando conosco em nosso inferno, e a festa foi simplesmente exemplar. O dia de hoje termina e a radiação toda diminui após penetrar cada poro, cada célula, cada vaso, cada gérmen de tumor. Amanhã o procedimento recomeça. Esperamos ansiosamente com olhos úmidos que mal se fecham de tanta interrogação. 

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sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Inventário de viagem


 
Assim que pusemos os pés nas terras gélidas, tivemos uma grande ou pequena surpresa ao perceber que, enquanto estivemos fora, as plantas quadruplicaram de tamanho, os gatos engordaram sobremaneira, as rachaduras da parede chegaram silenciosas até o chão e irromperam em tufos sísmicos, etc. Os olhos sonambúlicos, porém, continuam intactos, ainda que cada vez mais pálidos. Entramos em contato com eles numa experiência especular. Nada foi dito.

Os cadáveres ainda dormem no berço/os talos dos brócolis se desmancham macios. Retiramos cada ostra da água com cuidado, mas simplesmente não pudemos metabolizá-las. Todos os dias ali dentro foram o mesmo dia, e todos os anos foram o mesmo ano. Não soubemos apurar com eficiência se a irrazão na qual adentramos com moderada intensidade é aquele lago habitual de nonsense do qual nunca conseguimos de fato escapar, ou se se trata da forma atual e mais bem acabada da própria razão. Não importa. A realidade é toda fragmentada, vazada, maior que ela mesma, e nenhuma teoria coerente é capaz de apreendê-la de forma adequada. A falta de sentido, contudo, não é algo derradeiro, mas sim a via pela qual tombamos na realidade. Por vezes a falta de sentido é uma lousa lisa e escorregadia na qual as coisas não conseguem grudar. Por vezes, porém, as coisas grudam. Olhamos abismados para o mosaico quase compreensível que se forma e, ainda assim, o mosaico não é o sentido. Mas é que essa etapa não anula a etapa anterior. As coisas não preenchem a falta de sentido assim como móveis preenchem um cômodo. Uma coisa não está nem antes, nem depois, nem sobre e nem embaixo da outra, e sim ao lado. Uma não é sem a outra. Oscilamos desesperadamente entre elas sem saber que a verdade não está fixada em um dos lados, mas na travessia entre eles. A travessia é a própria realidade, e não há oxigenação apropriada. Atravessamos roucos e tontos para o outro lado enquanto as horas derretem. Recolocamos as ostras na água antes de voltar (elas choram enquanto dormem e nos colocam pouco a pouco no mais intolerável estado de nervos). As coisas são sempre pontudas e um pouco exaustivas. Em desespero, descobrimos o balcão dos ossos e recobrimos imediatamente antes mesmo de inalarmos o bolor.


Por fim, coletamos alguns objetos para trazer conosco para o lado de cá: alguns quilos de concreto esfarelado, sementes da falha geológica incrustada nas paredes e dois crânios murchos que guardamos embaixo da cama para que velem nosso sono. Trazemos também muitas perguntas mornas e úmidas dentro de um cobertor, e depois de dias e dias ainda não encontramos respostas. Deixamos os talos e as ostras, não há lugar para acomodá-los. Deixamos pessoas, pedras e olhos fantasmáticos. Trazemos junto dois pares de olhos que nos olham e amam em silêncio e carregamos sempre no bolso como amuleto. Todo o resto é disforme e não encontra palavra para caber aqui.