sábado, 29 de dezembro de 2018

Testamento



O meu grande amigo acena para mim. Ele caminha suavemente empurrando os ossos para frente, quase como um de nós, mas macio como em uma nuvem. Eu componho suas bochechas. Então eu beijo suas bochechas, troco a posição das pernas na sala, termino por incendiar as cortinas que ele já arranhou e torceu enquanto eu não estava aqui. Eu deixei de estar por tanto tempo que ele cresceu quase do tamanho de um boi, um animal parado, um automóvel, um amontoado seco de ossos, uma cavidade. Eu percebo seus olhares de sono, ele está depositado junto à mesa para participar. Ignora uma xícara de café, uma fatia de bolo. Ele me pede para levantar o rosto, endireitar os ombros, manter a postura ereta, esperar, não esmorecer. Eu continuo colapsado, toco sua face, escovo sua crina na primeira hora da manhã enquanto ainda estou sonâmbulo, mas prestes a despertar. ele rasteja pelo meu ombro. eu posso desejar estar amassado. Ele tenta me convencer, com os procedimentos mínimos e sem qualquer rigor, de que sou uma pessoa. Eu não consigo acreditar em nada do que está acontecendo. Eu choro de sono, ele ri da minha sombra, um crânio avulso também olha e ri, mas em silêncio. Eu estou envelhecendo mais rápido que vocês, digo. Não consigo comprovar agora as minhas suspeitas, mas já passei por experiências similares, perdi uma aposta para aqueles que estavam escapando pelo ralo. eles surgiam de cada poça implantada no asfalto, bem na minha frente, e de dentro do sono eu podia macetar um por um e depois ser alcançado por minha própria asfixia. Trouxemos todas essas opções como em um cardápio, e aqui eu não existo, repeti. A vida virou um caldo confuso, cheio de vértices. Esperamos pelo sinal luminoso do espaço. aqui dentro da minha casa eu espero amornar os dias, eu espero as crianças voltarem. Elas me trazem presentes, eu enlouqueço em poucos segundos. Os médicos entram e despejam sobre meu crânio um caldo fervente de uma jarra partida. Meu amigo me olha ainda em silêncio. Eu peço para que, enquanto espera, ele coma seu ovinho. A coisa aparece apontada para mim, eu desapareço dentro das árvores, espero por um universo, com todo arrependimento do mundo. Não estaremos por aqui por muito tempo, não há lugar para nós, Então forjamos outro universo para sentar. Ele permanece comigo sem que a passagem de tempo nos atrapalhe. é muito bom estar vivo e com todos os ossos prontos para nada. eu estou prestes a dilacerar as cordas, cortar o cordão das flores. Eu coleto os peixes e deixo-os sobre o asfalto para que ninguém diga uma palavra ou se irrite. Não suporto seus olhares de rancor, de sombra. Eles, nesse exato momento, estão dispostos em círculo, cantando coisas sem nexo, esfregando as patas na parede. Minha boca está quebrada, não consigo sintonizar uma próxima partida, a percepção requer um novo instrumento, uma folha que possa ser usada como escudo, um galho partido que possa ser usado como espada. Uma nuvem levanta e interrompe o fluxo, lembra as coisas perdidas, despejadas, decompostas. O que poderia ter sido, o que quase alcancei, o que construí por poucos dias, o que construímos por poucas semanas, assim foi, sem nenhuma palavra para colocar ali. E se coletamos todas essas palavras e elas não ocupam um quinto sequer do espaço? sem poder registrar sequer, todo desconforto possível em nossas mãos que mal se tocavam, etc. Ele me alcança cansado, me incentiva a continuar. eu então descrevo todos os rostos pela manhã enquanto espero. cada decepção, uma por uma. O dia é calmo, as pessoas caminham pela estrada de pedra, o pombo reenvia as conexões, eu desisto de viver, caio da escada e quebro um braço ou dois. Ao que eles chegam para me ajudar a levantar e respondo que estou apenas calibrando minhas articulações. todas aparecem infladas, inutilizáveis. estou incansavelmente descolado do universo. encontro uma pomba no chão, peço para que se anime. Doze horas passam novamente, a cidade escurece, some. Acende um sinal luminoso no céu. Todos chegam para comer empovorosos. Desistiram de chegar mais tarde, olharam o caminho cinzento. Durante todo esse tempo eles estiveram prontos para existir, mas nada aconteceu, nada aconteceu sem a nossa permissão, tivemos um controle excessivo, o controle impediu que aparecessem brotos, formas torcidas, rostos pálidos, cascas sem flor. O tempo transcorreu vazio dentro de cada quarto: paredes mofadas, fumaça de incensos cancerígena, muita alegria no interior de cada concha lascada. Como passaram esse tempo? eu adoraria saber. poderíamos fazer uma reunião com petiscos, ansiolíticos e charutos. Vocês poderiam coletar todas as coisas que evitei, sentaríamos em roda, vocês me contariam uma história aleatória, sem pensar, como em um fluxo, e no final seria minha própria história porque qualquer peça poderia ser desencaixada e recolocada em outro lugar sem nenhum prejuízo. o absurdo não conhece nenhuma ordem. Naquele dia em especial foi depositado sobre minha cabeça aberta um colar litúrgico, uma concha macia, parecida com nossos avestruzes pequenos que criamos de manhã. Dois deles foram depositados também em nossa palma. Polvilhei seus resquícios, comecei a chorar sem provas, eles me deram o coelho para macetar, chorei por ele com quem eu mal conseguia falar, depois adormeci, morri em silêncio, com uma curvatura de moscas sobre minha cabeça cicatrizada. Então, quando estou no palco, todos me olham com muita paciência. Pensam: talvez você não vá muito longe, mas esperamos que você possa sair intacto. Eu não posso então nem me virar e já sou rotulado com alguma porção de ossos crus. Ora. Ele se sente subjugado por uma pequena ostra incrédula que também não move meu chão. Cantamos para os cadáveres das crianças que acordam um a um e se juntam a nós para alegrar. O mundo se transforma em um novo inferno, os círculos ardem ainda mais, não entendemos como é possível viver, solicitamos o manual que já vem incinerado. Propomos uma nova reunião para discutir os métodos, selar os propósitos, alinhavar os instrumentos, desistir de um sonho. Finalizamos as concreções. Perguntei a todos que morreram se desejariam existir por um segundo a mais bem na minha frente. Mas eles já fizeram as malas, coletaram as canecas, as escovas, as capas dos botijões. Outro cadáver levanta e me cumprimenta, eu me alegro, derrubo o vaso e espatifa. A realidade é só um osso difícil de roer. Se eu quiser continuar, ele não pode me impedir de viver em nenhum momento. Não posso deixar nada por fazer, não posso permitir nada no interior de uma ponte. A corda é esticada dez vezes para alinhar as fibras. Ele se alegra demais para morrer, ninguém mais suporta o quanto a pele transpira macia, ninguém suporta que ele sorria tanto nessa circunstância, nesse lodo dramático. meu amigo salsichas está sentado e não aparece. Eu recomendo que não apaguem essa imensidão inteira. sem que você percebesse, eu estive ao seu lado, esperei você dormir para quebrar os pratos e talheres, contei as bolhas de mofo no teto, aguardei o carro se aproximar. Eu estive dormindo, confesso. Sei que você não podia imaginar. Eu fui até a próxima boia (só para) não dizer seu nome. Você invadiu como uma coisa extrema, soberba. Mas tudo é sempre muito divertido aqui nesse pasto. Não deixei de rir nem mesmo depois do tombo grotesco, de cada fraturinha. E agora esse é o centro da minha vida. Você então me ouve dizer que o silêncio, com todas as horas, resiste a decrescer. Porque absolutamente nada disso é comunicável. Os tumores podem ser trançados nos pontos do tricô. Mas eu já não vou muito longe, meu docinho. Estou sentado em frente à estátua há milênios. Eu sinto sua falta, e sei que você jamais usaria um tijolo para abrir minha cabeça, meus olhos, ou qualquer coisa parecida. Então pode ficar por aqui, beber o chá que esfriou. Tornar provável uma nova concentração, uma folha ambígua. O meu grande amigo não acena mais para mim. Agora, depois de todos esses meses, ele prefere não ficar ao lado, ele prefere o lugar mais seguro, e eu lhe dou toda razão. 

Pois bem, sente-se e me peça para continuar narrando porque eu já esqueci. Eu amo cada pedaço, aprendi a esperar, a desmaiar com a cabeça no fundo. Olha, pra mim já deu (e então devo rir até sufocar?). Os anos se seguem uns aos outros, a matéria dos anos é porosa, eu peço que me perdoem atentamente. agora eu desejo que todos vocês continuem nas próximas horas como se não houvesse meu pasto ruim. Pudemos parafusar todas as horas de manhã, quando você acordou. O ônibus passou e dele surgiram ondas que recobriram o ponto com colocações muito precisas. Guardei na mala para poder seguir também. Tomo a palavra para me posicionar pelos homens, pelas estátuas. Percebo que não consigo existir. Então peço ajuda a um poste que me acompanha, sinto os sinais como em um dia nublado no qual as coisas começam a anoitecer antes do horário marcado, uma atmosfera sinistra. Propicio as escadas como folhas abertas marcadas para serem trituradas em um quintal. Convido todos a participar desse ritual desorganizado, em que cada um deve falar o que bem entender e depois, torcendo para que o tempo não mude bruscamente, recolocar nossas esperanças em um baú fundo artesanalmente talhado. Eu também não fui essa pessoa, eu não soube construir coisas já com medo de que elas ruíssem. Mas venha comigo nessa pequena bolha pelo espaço. você está deitado, você se conecta com as coisas na parede, com isso que é uma pessoa que morreu, e depois você viajou até uma ponte e depois outra pessoa morreu, e depois você percebeu os espelhos e outra pessoa morreu, e depois. Mas ainda assim, eu tenho medo que a qualquer momento ele caia sozinho, fique preso na grade, se enforque no puxador da cortina. Percebe cada coisa revivendo? Estufando da terra morna, meus pés queimam. mas os dele são recobertos de uma lona espessa, ele pode caminhar horas ou dias sem nenhum desconforto. Se eu quiser continuar por esse caminho, nenhum deles pode dizer nada. E, magicamente todas as conversas aparecem já construídas, faladas, vividas em cada proporção. Podemos apenas colocar no bolso as memórias renovadas e continuar. ninguém está aqui.


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Há um número de pequenas coisas



Andamos por todos os ventos na cidade. Alguém vai me salvar, – minhas vísceras já estão prontas. Eu repouso nos seus ombros mais secos, cuidando para não esfarelá-los. E assim eu faço cada dia. Não aceito nada menos que um não bem redondo na cara. O sol nasce sonoro, as estruturas do espaço amolecem com o calor. Eu colho suas palpebrazinhas, você me embala para dormir (sem sucesso). Doze bagres são nossos filhos e não sabemos como alimentá-los. Eu estou sonâmbulo até esse poste, mais alto. Vou amassar seus olhinhos para mim. O sofrimento é pequeno, infinito. E não adianta rir em silêncio, eu compactuo com minhas próprias ideias, executo todos os procedimentos sem hesitar. Desconheço outra forma de viver. Me concentro, psicografo enquanto os ovos cozinham, enquanto a coisa atravessa meu crânio. E, quando atravessa, eu não imagino outras possibilidades. Não há outra coisa que possa acontecer. Encolho minhas pálpebras em gratidão. Você está claramente sem reação, como se essa cena absurda fosse indissolúvel. mas você pode usar qualquer coisa para derreter esse gelo sobre meu colo: uma espátula, uma ostra fresca, uma betoneira. Enquanto experimentamos ainda mais o sol (os raios), os planetas continuam em pedaços. Mas eu piso em falso sempre que tento sair. Os pedaços estão disparatados. Apenas não recue, jamais. 

Por onde ele continua andando, eu entendo cada uma das flores depositadas. Vivemos dentro dessa tigela por tantos meses ou anos. Espero que renasçam todas as ervas, todos os pesos. Nada aqui pode fazer sentido, mas também, se algo fizer, será suficiente para destruir uma imagem? uma memória? não se sabe exatamente se toda lentidão foi construída ou rompida, despejada ou evaporada de antemão. Não troquei nenhuma palavra de manhã, nem a tarde. A flor desabrocha em meu ninho. Conquisto os próximos mares a pé, tremendo. Esqueço-me de todas as vezes em que fomos ao quintal, ao arbusto, em frente ao portão. Despedimo-nos antes que eu partisse a pé, eu poderia rastejar pelas ruas sem incômodo. fui embora pelo asfalto, passei pela janela, cobri os ossos, deixei de estar no temporal, cobri os pequenos animais que passavam. Não tem nenhuma importância estar vivo. Não tem problema e é agradável, eu me divirto com cada farpa. Nenhuma pessoa consegue observar, descrever o movimento, o próximo enquadro especial. Não deixo de observar suas sonolências. Você também não resiste de maneira particular. Não falo exatamente nada. Mas não acredite em nada do que está acontecendo, por favor. Eu também não acredito que você está aqui, e você esteve aqui o tempo todo. Eu agradeci e continuei seguindo pela estrada. Chegamos depois pela janela. Entrei, você riu e eu ignorei, como se ninguém tivesse existido na face da terra. Eu deveria estar aconchegado no meu ovo. Depois da longa viagem, chegamos e entramos pela janela. Eu vejo seu bico florescer. Não registro as próximas horas porque elas não passam a contar. Já desisti de todas as escoriações. Quando você resolveu meu braço, meu espaço oco. Não compreendeu nenhuma de minhas falhas como uma construção mole e macia. Vou começar a contar adiante os passos. Vou começar e peço que me ajudem: por onde você continua andando, carcomendo os cantos. Eu então dou um passo em falso. Você coloca suas patas em volta de mim, você sabe que eu não preciso de punição. Todas as próximas ostras estão recolocadas em um pardal, em um próximo fio ensolarado. Não existe nenhum método seguro para sobreviver. retorno para que possamos viver em ventos mais fortes, para que você possa abraçar minha cabeça. Mas se você chega, toca a campainha, entra até aqui sem minha permissão, eu olho cansado, não tenho claro para mim os meus procedimentos, aquilo que pretendo concretizar. Agora preciso de ajuda para reconstituir os passos. você sabe, no fim das contas, quem me tirou daqui? Quem foi levado até o próximo altar? Eu não soube de nada, eu mal retornei as ligações, e assim esperei que uma resposta melhor se formasse (e que viesse de mim, sobretudo). Ninguém sente a pálpebra salgada sem os ovos. Aqui fui depositado e não encantei ninguém. Fui celebrado até a próxima horda, até o próximo avestruz. Fui também silenciado por todos aqueles que entraram nessa casa e sentaram em torno da mesa, quietos, esperando que eu servisse a carcaça de um pardal. Esperando o próximo movimento ruim. Você entende? Desconheço as próximas aventuras. Se eu puder emprestá-los essa forma de viver, eles poderiam olhar. Eles nos olhariam com os beicinhos mornos, caídos? Ele é macio, está ressonando ao meu lado. não perdi a batalha ainda, mas quase. Estourei todos os legumes de uma só vez. Estou psicografando as cestas maiores, colocou o ovo dentro de mim. Mas os mortos não olham. Ah, mas então você também desistiu de todas as ostrinhas, e sem um ruído qualquer que pudesse denunciar a manobra. Derreteram-se os blocos de gelo sobre meu colo. Precisamos montá-los desde que você me conceda uma tarde inteira, sem sair. Não desisto. Já morri, mas queria deixar bem claro que não estou desistindo. Sigo em frente, com sangue nos olhos. Pulverizaram a estrada por onde preciso passar, e que doçura essa pedra rompida na qual tropeço e retropeço. Se você quebra sem querer meu crânio no percurso, eu não tenho do que reclamar. Os demônios me protegem dia e noite com muito cuidado. Carregam as vasilhas de água até a próxima estrada, na floresta, varrem a poeira para debaixo da porta, onde ela some. Sempre que necessário, arrebentam as teias de aranha recém tecidas, destroem todas as células e também os tumores. Agora minha ostra já está fraquinha. Meu deus do céu, eu me recuso. Eu me recuso a existir, e, ainda por cima, existir até quando? Por favor, assinale o calendário na parede. Peço encarecidamente para que, antes de ir, você assinale o calendário, me mostre o limite, o dia do juízo final enquadrado. Essa informação eu só não pude obter. As frestas se abrem para o abismo em flor. O abismo florido escapa por entre as folhagens, despejado. Sim, eu entendo as regras, eu recolho todos meus órgãos soltos pela sala antes de dormir. Todas as aves também secam a alvorada, e se você está aqui. Agora eu estou aqui descansando com meu melhor amigo, ao que ele olha a pomba no muro e eu pego no sono. Todas as convenções se tornam inúteis, pura perda de tempo. Cumprimos com o prometido. Não trouxemos nada que fosse muito pesado ou misterioso. Será que ele já mudou de ideia? Ou desistiram todos do meu pasto? Espera por uma mensagem que nunca vai chegar. 

Ontem ela chorou porque percebeu que vai continuar sozinha. frustraram-se as expectativas absurdas, e os outros planetas já estão em pedaços. Onde estão todas elas, em fileiras? Olhe as ostras no mar: é o próprio inferno. Os gatos dançam conforme a melodia, os pardais espasmam, todos os próximos bois caem do desfiladeiro. A história acaba simplesmente, sem fundo, e eu já estou pronto para submergir, eu que não fui sequer capaz de alegrá-los em uma tarde ruim. Telefono a ele – sem sucesso. peço para que, um ano depois, ainda não desista do meu pasto. Dias depois eu fui retirado. Dobramos todas as entradas para fora. A plantinha escondida no quarto. Sem assustar demais. A casa percorreu vazia. Ninguém soube encontrar seus lugares na mesa de jantar. Apalpei seus pés durante a noite. Nada foi devolvido com proporção, com justiça. Participei dos seus resíduos na festa. Estouros e luzes, com muita alegria pelos contos. Pessoas iam morrendo aos poucos. Refresquei os cantos de sua memória. Sem hesitar um descanso. Mas esse descanso e essa palavra – digo aqui enquanto sou entrevistado – é tudo o que há. Fracassei, minha pequena ostrinha. A história acaba sem que eu tenha sequer entrado nela e aproveitado um instante com os animais. Os vizinhos me veem e aplaudem, agora estou no auge, grito por existir. Estou descalço, porém. As folhas ainda invadem a calçada, até esse mês. Tardiamente, as folhas ainda invadem a calçada aos montes – eu amo vocês em silêncio. E seria adorável estar do outro lado. Ninguém olharia nenhuma sombra. Assim que desviássemos da rota, seria novamente um outono. Mas então onde está a coisa toda? Essa doçura está ao lado, não podemos nos importar. Aqui você já tem sua escovinha de dentes. Pronto para dormir. Todos consentiram com o final do meu universo. Nesses momentos de plenitude eu viro minha cabeça para o teto. Participo de todas as coisas que estão vivas. Eu recolho seus pedais que já estão mornos (eles podem precisar de mim). Eu explico que você é só uma criança assustada demais.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Eu fico feliz que você esteja dormindo



Nenhum osso faz parte de mim, nem mesmo esse que uso para recolocar as coisas nos cabides. Sento no asfalto, recolho meus calos, espero evaporar todas as chances, espero o vapor arrefecer. Cruzo a passagem sem qualquer ruído, começo a desaparecer. Enquanto isso ele me olha, e meu contorno é apenas espesso e ruim (não posso acreditar que fui deixado aqui com as cabras, com os patos assustados, com as pastilhas em flor, com os dromedários, etc. encapsulado, ostracizado como nenhuma outra hora degolada nos relógios).  

Ele observa minhas varizes. eu observo e não me calo. Ele olha, eu desvio o olhar quase sem saber. a construção parece mole. Enquanto isso, olho atentamente seus espasmos. ele apenas resiste, nada parece coexistir. De repente, chega um osso redondo e me assusta. O cavalo parado me azucrina, essa estria azulada me coloca em disformidade com os outros espécimes do mostruário. Percebo e quero apenas engendrar novas horas para cair. Esse massacre carinhoso é o que nos coloca depois da realidade, submersos na calçada, se ainda não choveu. O horizonte é bloqueado, não pude reviver em paz. Ele me olha sem perceber minhas sobrancelhas. Não devolvo nenhum olhar que não me foi dado ou oferecido. Já avisei que vou morrer com muito cuidado e esperança, e até lá continuar ciscando como todos, encontrando insetos para preencher o tempo que é só o imenso vômito em que nadamos com muita assepsia. Para chegar ao instante final e agradecer a todos, enquanto minhas narinas já aquecem com o sono hipnótico, com o tempo sendo comprimido até a espessura de um papel. Obrigado a todos que estiveram aqui, adorei estar vivo, fomos até a outra ponta do parque, cuidei de nossos pastos, dos ombros. Enquanto não acontece, nadamos em frente, com sangue nos olhos. Deus interfere maciamente em cada um dos poros, pedimos a Ele que não nos deixe perdoar nada nem ninguém. Meus olhos circundam o ambiente, cobrem todo espaço mal preenchido: uma lentilha, um espasmo, um quadro de algodão. A vantagem aqui é que ninguém me esmaga, a não ser a coluna de ar sobre meu crânio. Dormimos durante o sereno, perdemos os joelhos para a maré fria. O vento úmido chega para mofar nossas entranhas. abençoar as crisálidas, as conchas presas ao véu da areia, o lixo oceânico, etc. As pombas comem a comida dos cachorros. Ele iniciou a floração pelos meus cabelos, prometeu que me cobriria para sempre e me deixaria dormir, então encostou a unha na superfície flácida de uma bochecha opaca e oleosa (a ternura envolvida apareceu camuflada, enfraquecida). Pego novamente uma outra fruta ou legume e encaixo em sua cabeça como uma coroa. ele não consegue mais rir ou não quer. Colocamos então cada espaço para afrouxar, sua fragilidade foi responsável por outras horas. Eu recebo seus sinais como um animal cansado, não canso de esperar. Quando chega o momento preciso, enfrentamos o que quer que seja com as quatro patas no chão. Ninguém pôde nos avisar, fomos os últimos a saber. Mas não posso esperar aqui para sempre. Tenho medo de que, ao ir embora, ele se torne um pássaro ruim. Empacoto as urtigas para comer mais tarde, reduzo a atenção até o mínimo necessário. Alongo minhas artérias, resseco a ponta do cordão. Me armo como uma ostra, uma aranha fraca. Decido não continuar. Precisamente nesse instante ele chega até mim e me mostra a chave inesperada, sem nenhuma cerimônia ou interrogação. Trago seus braços para o interior da sombra. Você tenta inutilmente fumar um palito de fósforo queimado. Não consigo entender um milésimo sequer de toda essa realidade imbecil. Retiro os fósforos de sua boca um a um, deposito embaixo da maleta para caso de urgência, para uma necessidade vindoura. Preocupo-me com as nuvens e depois com mais nada. As horas vão sendo catapultadas para depois e aqui nada permanece. Optamos juntos por cozinhar as próximas horas até o ponto de ruptura. Ele tomou minha mão, vindo de um ambiente calmo de mistério, eu podia sentir a vibração na outra mão. eu disse a ele que íamos de encontro ao inferno. Sentamos, vieram e fizemos o pedido. Alguma colocação percebida de perto, eu disse a ele que ninguém em uma mata tinha despejado aquilo sem nenhum furor – o que me fez lembrar imediatamente da noite da festa. Caminhando pelo campus escuro, vento seco, alguém surgia aos poucos de um ponto luminoso no descampado. Chegamos até uma parede de vidro, trocaram poucas, pequenas palavras, e voltamos. Hoje eu fico feliz que você esteja dormindo, mas naquele dia eu pude transformar cada carícia nova em um conforto nervoso, arquejante, impaciente. Eu previa a catástrofe, mas o momento era de puro cuidado. As mãos compreendiam, apesar do frio. Apenas ali naquela noite (que durou meio segundo) ou em outras. Não sei bem o que tiraram de mim. Quando ele virou e disse: “você simplesmente não existe!”, lembro que rimos muito ao perceber que, na verdade, isso nada tinha de metafórico. E que para sempre os acontecimentos seguiriam mais ou menos o mesmo circuito: ninguém se importa, bom apetite, coma seu ovo. Eu olhava os espelhos grudados em seus dentes, e algo foi tirado de mim. “você não existe” – ecoa macio, quase inaudível. Você não existe – mas nenhum de nós. Acaba com os meses acumulados, com os anos. Eles são pedaços de árvores. Eu peço encarecidamente para não morrer. Recebo um sinal de que um ou dois dias a mais podem ser concedidos. Uso ou perco a graça, exponho meus dentes, esfrego nas árvores essa coisa óbvia ou estranha, espero roer cada canto de memória, cada lembrança áspera. Fracos são os gestos simples, azuis. Ela me ensinou a sofrer em cada uma dessas etapas, eu admito que aprendi melhor do que deveria, reproduzo agora o peso agoniante. Ela me espera com um cálice, tremendo. Convidei o peixe para outro evento mais tarde. Trouxe os galhos um a um, em segredo. Pude macetar as outras crianças dentro do sono. Não existo porque fui enviado às rochas maiores. Rochas maiores, afastadas do chão. O bagre é quieto e não olha. Quando fui encontrá-lo no parque, sentamos na grama para conversar sobre as coisas que estavam crescendo, morrendo. Olhávamos absortos, ali estávamos nós, olhando a ponte ao fundo e por trás o pôr-do-sol. Era macio o dia, como uma folhinha. Havia coisas nebulosas, incômodas, o que não se poderia saber ou imaginar. Eu não acreditei que aquilo poderia ser uma coisa, que ele ou eu seríamos pessoas, que o gramado era um gramado, e assim por diante. Muitas coisas morrem porque falta quem acredite. Eu sabia esperar o tempo passar, pequenos eventos incompreensíveis preenchiam inadequadamente as falhas, eu extraía do lugar da cabeça uma sombra nova, entregava a ele para que se pudesse comentar algo rápido, sem viabilidade. Pouca coisa dita parecia viável. Quando a projeção mais mirabolante ela lançada entre nossas pernas, eu acenava, dizia que sim. Olhava os músculos soltos, a forma bruta. Sentados na grama, não havia nada de sensacional ou abrupto, nada seria capaz de romper o dia pelas pontas, pela metade, pois ali na passagem de ar o tempo seguia em direção às outras ruas até chegar no portão, no quintal, na garagem, na sala, na escada, no quarto, na cama. Um ruído alto não seria mastigado, seríamos dispostos para dormir como dois pequenos bebês roxos, assustados de sono (eu não tinha sono algum, mas uma concha ou ostra me fazia dormir, também o calor, os estrondos cada vez mais leves). Vinte e sete horas até morrer por completo, eu tenho essa graça (Ele lá embaixo me concedeu, e não devolvo), os demônios também concederam graças importantes, às vezes apenas retroativamente importantes. Outro dia ele tentou me convencer de que todas as espécies são igualmente evoluídas, já que bem adaptadas a seu respectivo habitat. Todas chegaram até aqui, e eu também. O universo já caiu em desuso. Mas não deixei nenhum animal para trás, não consegui caminhar sem minha semente, trouxe o avestruz, a ostra, o bagre que ainda me olho fosco. E cada história é tão mansinha! Eu não acredito. Peço silêncio para terminar. Uma euforia toma conta, sobe até a ponta de um braço, de um osso. Ele disse apressado que não podia se movimentar, disse que não poderiam continuar longe, mas. Façam silêncio, por favor! preciso colocar minha ostra para dormir. É impossível proceder dentro desse alarido. Eu peço que agora me ajudem. As horas acabaram, temos de iniciar o protocolo de desligamento, acionar as autoridades competentes, completar o ciclo e enxugar os olhos que escorrem.

Agora ele me ajudou a me enterrar dentro da cisterna. Pedi as cobertas, o molho evaporado, o espeto. Mas sem sofrer demais eu quero estar junto de você, e você também pode sofrer se quiser. Ele concedeu o aval. Sem pestanejar, compreendi com mais exatidão o espaço de todas as horas, de todos os animais maiores. Tomei cada um pela coleira, passeamos pelo bosque. Agora no pórtico com luz, estou com ele aqui na frente. Chegamos em casa e peço a ele que verifique as vigas no teto. Olhe e não espere desfiar. Senão, a casa cai em cima de nossas cabeças ineptas. Conceda esse espaço para sentar e viver, sem lembrar. Mas cada coisa não acontece, nunca. eu espero espumar o caminho para poder sair. Ele me dá a mão, descemos pelo barranco, por dentro dos troncos das árvores, extraio a polpa dos ossos, escorro o rosto pasmo de sono.