domingo, 8 de novembro de 2015

Sob um mar

                                                                           
          Sopraste com o teu vento, e o mar 
os cobriu; afundaram-se como 
chumbo em volumosas águas.
Êxodo 15:10



Em primeiro lugar, trêmulos estão os lustres sob as águas geladas, estorricados e quebradiços apesar da umidade excessiva. Em segundo lugar, a grande ostra ralada próxima ao poste marinho. Em terceiro lugar, a noite insossa e disforme sobre o mar. Em quarto lugar, a falta de preenchimento dentro dos ossos. Iniciamos enfim.

Dentro de um mar gradativamente mais ácido pisamos na saliência de um pequeno rombo dentro da profundidade terrificante. Perdidos no interior das algas. Sem referências, sem perspectivas e sem sonolências. Rompendo películas imperceptíveis/sugando a seiva de árvores subaquáticas. Imploramos para que outras ostras nos olhem e realizem o procedimento adequado, que é o mínimo de expressão dentro do mar. Dentro de uma escuridão atemporal e vazia – a porosidade do mar é causada pelo próprio sal que coagula na superfície (perdoem-nos o excesso de cientificidade). O sal dissolve nossos calcanhares, o rosto pregado num ponto excessivo, os rins que boiam como esponjas quase gelatinosas. Naquela escuridão infinita de um mar acoplado na base da noite, continuamos a penosa coleção de ossos enquanto os alvéolos espasmam com a falta de oxigenação apropriada. As estátuas fincadas no solo marinho olham com ternura para o miolo da escuridão. Por vezes uma coreografia de microrganismos/raramente um feixe de luminosidade faz imaginar que, de algum lugar do solo, um tufo de areia pode bruscamente saltar e descobrir coisas vivas e escuras. Enrolam-se precisas nos calcanhares as algas, pois desconhecem suas próprias razões. Elas pressentem o rombo suave junto ao príncipe de uma velha imensidão (quase) concisa. E não há nada a ser feito a respeito. Primeiramente olhamos como quem não reconhece nada além de uma neblina formada pelo deslocamento dos cardumes. As gotículas que formam uma nuvem dentro das águas e a dificuldade de enxergar sem uma ostra sequer para encaixar nos olhos. Perguntamos a alguém que tenha de sobra uma ostra em cada olho se seria possível emprestar-nos uma para grudarmos no nosso. Dentro do escuro. As coisas passam a compor um silêncio em que os pequenos cristais tremelicosos do lustre emudecem e turvam nossa travessia para baixo. Na cavidade imprecisa nada consegue ser confortável. Não há absolutamente ninguém aqui agora, nem nós mesmos. Há coisas que são pequenas ratoeiras, perdidas no espaço. Se não fosse o mar, dunas de poeira cobririam as palavras não vistas e os olhos. Alguém um dia vai ouvir o grito das ostras? Sempre tão empoeiradas e vestidas com a mesma ossatura, ninguém suspeita de nada. Pensam alguns que se trata de umidade e poeira calcificada, e nada mais. Mas assim como uma nuvem microscópica não é só uma nuvem, um fundo de ostra também não é só um fundo. Em todo caso, melhor romper enquanto sentamos na varanda e sentimos o peso dos raios descendo até a copa das árvores. No fundo mais inóspito do mar é que a regressão encontra uma flor e aparecemos com as costas arqueadas e as pupilas dilatadas recordando o rosto vermelho e olhos úmidos sem comoção. Diante do monstro sagrado que consumiu o tempo: rosto vermelho e sangue que escorre de lábios murchos, sem nenhuma razão. Até quando as coisas estarão fora de nós para observarmos? Um sentimento feito de isopor, incompreensível e levemente dolorido, manchado de líquidos antigos. Esperamos a guerra no asfalto sem rir e sem chorar. Sem um padrão de medida definido, como medir as coisas? Como comparar a efetividade com a ideia? Como avaliar a palidez das horas, como julgar a falta de fundamento dentro do mar? Pois se dentro da fossa submarina a distância de uma ponta a outra não pode ser calculada, já que sequer existe uma ponta ou outra. O índice da profundidade é só ela mesma. Ali dentro, o mar perde uma localização concreta: quantos palmos existem para esquerda? para cima? para baixo? para trás? não se sabe. O ponto não é localizável, e quem ali se encontra sabe que nem o fundo nem a superfície são localizáveis. Pode-se tatear sem pressa através de um corredor imaginário, e ainda assim não se chega ao fundo, nem à superfície, nem a um canto encaixado a uma caverna ou a uma fossa abissal. Para um animal marinho gigantesco, pode-se dizer que é uma liberdade poder movimentar-se sem reservas e sem mover um fio áspero sequer ligado a uma ostra. Para nós, a ausência de padrão de medida paralisa o movimento. Se ao menos chegássemos ao fundo, poderíamos ter a certeza do caminho a ser tomado então: o de volta. Não há sustentação, porém. E nem uma sustentação invertida: um teto que nos impeça de subir ou uma parede na qual possamos bater o nariz. A liberdade coincide com uma falsa liberdade delirante. Ela é apenas a distorção esfumaçada de uma vida em que cada osso estaria encaixado no lugar em que deveria estar. Mas sob um mar o rosto chega a aparecer e então o colapso conduz ao esquecimento, e é preciso esquecer. Viver é sempre artificial/estar grudado ao canto morno da parede. Sentir o ar correr sem mistérios e não entender como pode um ar correr sem mistérios, e não entender como não é possível entender que um ar corra sem mistérios, e então pegar esse bloco inteiro e aplicar a ele seu próprio raciocínio: não se pode entender que. Após a operação completa, o resultado é: "não se pode entender que". E se rompemos a operação e descartamos todo pensamento, o resultado é: "não se pode entender que". De qualquer ponto que se parta, o resultado é sempre o mesmo. Rimos tanto que nossos dentes caem e os perdemos sob um mar. Assim, com tinta de lula escrevemos os caracteres incompreensíveis que compõem o padrão de medida. Mas pedimos em silêncio para que nos ajudem. Ajudem-nos a untar os lustres com óleo oxidado, ajudem-nos a filtrar a água macia onde as ostras morreram de inanição! Temos de fazer algo para acalmar os nervos e nutrir as pequenas crateras que tremulam: embalar ostras em alto mar, descascar nozes até o fim dos tempos, etc. Para os espelhos da noite, o corpo envelhece mais rápido e por vezes até some. Uma nova escolha pode determinar que nos próximos tempos uma flor brote suave de cada poro. Uma alegria funda pode também brotar de cada poro. A oleosidade do lustre quase se deixa escapar. Desconstruímos o rosto mole: as bochechas fartas deixamos amortecendo no balde com gelo. Os olhos são cuidadosamente espetados em arames e funcionam como brincos tímidos. O olhar difuso dos olhos teve de ser descartado para não deixar o prato intragável. A testa trêmula não tem função. As pálpebras se desfazem suavemente e perfumam as horas que continuam a passar para os outros. Com o conhecimento técnico adequado as orelhas estão marinando no caldo de alecrim e papoulas. O peito é fraco e seco, precisa de catorze dias para absorver o tempero. Nada pode sair dos eixos precisos. Olhem e se desesperem: como poderíamos interferir? Viajando centenas de milhares de quilômetros apenas para entregar-lhes uma caixa de ostras carameladas? não é possível. É aqui que não devemos ficar. Mas eles ririam, eles ririam tanto! Seríamos suaves... e inclusive a chuva, que gostaria de cair agora, deixaria para cair mais tarde. Soltaríamos rojões pelo céu de ventos calmos. Enquanto eles seguram nossa mão, lembramos daquela tarde lacônica: distraídos partíamos o crânio em partes menores para facilitar o derretimento no purê. O cérebro era vivo e brilhante, ainda que morto. Distribuíamos as fatias pelos pratos conforme a necessidade e o merecimento. Os lábios rachados foram para o monstro que soube parti-los (sabíamos que ele ficaria muito feliz em emoldurá-los e pendurá-los na melhor parede que pudesse encontrar). Fomos até a horta e trouxemos um punhado de flores azuis que maceramos junto com o sangue antigo/escorreu um óleo rançoso que tivemos de despejar nas hortênsias que não existem. Hoje é outro dia e também não existe. Aliás, o dia de hoje já está bem mais envelhecido que um fóssil, e isso eles não puderam chegar a saber. Segue o jantar em fervura: duas folhas verdes pesadas cobrem o fundo do prato. E o acompanhamento suave: uma lata de crisântemos em conserva? deus do céu... (os túneis dentro do silêncio se desmancham pouco a pouco. Um por um, os resquícios de conforto se dissolvem, uma lua que reflete no mar se expande noite adentro). Quantos dias esperamos por eles? dias? horas? anos? O silêncio é índice da infinitude. Mas um dia teremos de morrer. Não entendemos quem são eles. E nem a razão pela qual eles vêm nos buscar antes que a madrugada esteja adequadamente consolidada. Suas mãos tão geladas paradoxalmente só conseguem amornar as nossas. Colocamos o ponto final no fim de uma janela. De cujos vincos caem grãos de poeira pulverizados que colam no rosto úmido e são pequenos absurdos – como tantos outros. Não há eixos, nunca houve. Cada ostra dentro de cada olho eu amo tanto. Alegremente eles vão tomar tudo o que é nosso no interior da casa, tudo o que velho e inútil, porém nosso. Eles vão borbulhar no mais escuro da noite, vão tomar para eles os olhos avermelhados que outrora piscavam como um grilo vivo.

Em primeiro lugar, trêmulos estão os lustres sob as águas geladas, estorricados e quebradiços apesar da umidade excessiva. Em segundo lugar, a grande ostra ralada próxima ao poste marinho. Em terceiro lugar, a noite insossa e disforme sobre o mar. Em quarto lugar, a falta de preenchimento dentro de um osso.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

nota no.1


O pequeno cálice, o som em meu umbigo, o som, o cálice vibrante continua a soar por muitos dias. Quando afinal as vibrações esmaecem, há uma presença em mim, uma presença. Algo semelhante a um besouro, não, a uma aranha de movimentos lentos. Logo não é mais uma aranha e sim um pássaro de asas curtas, sem bico, os pés cortados, um pássaro cinzento, mais tarde um peixe quadrúpede, aflito e inquieto, nadando com esforço em meu útero verde. Abro a janela e os olhos do peixe se iluminam, choro e o peixe entristece, tenho sono?, adormece, corro e suas pernas se agitam, assusto-me e ele se encolhe, alegro-me e as suas escamas resplandecem. Sem que eu saiba, há em mim uma cisão, de mim mesma estou nascendo, invado-me. Já não é um peixe, mas um cão, um cão ornado de plumas, com grandes barbatanas, que me ocupa. Tem pés e mãos. Às vezes estende a perna, com o pé fura-me o ventre, o baço, eu me contorço de dor. Ergue o punho e me fere o coração, atravessa-o: surgem manchas roxas no meu corpo. Lambe-me a garganta e eu vomito. Ligo tudo isto, aturdida, à ave que desce sobre meu ventre e, muitas vezes, muitas, sondo as nuvens. Mas a ave não volta, nunca mais, nunca, não reaparece.  


Osman Lins /
Avalovara


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

pergunta



Quem são as nuvens microscópicas que cabem dentro de um sonho? 

sábado, 29 de agosto de 2015

En cendres



Cada dia em que começamos a existir, a radiação eletromagnética é inutilmente duplicada e atravessa nossos corpos de uma ponta até outra. Se a roda gira em sentido contrário, então por aqui não podemos passar. O rio está empedrado, cristalizado e morto. O teto está todo coberto com coisas que amamos e deixamos desaparecer. Por aqui não podemos passar. Ali no fundo eles nos olham, sempre opacos e enigmáticos. Corremos por um pontilhado no chão e chegamos até uma urdidura onde as coisas então acontecem. Sentados sobre o caos e olhando, o mundo passa mais rápido. O tempo nunca passa. O mundo sim.

Trazemos para o colo morno os quilos de plantas que antes mergulhamos em um banho suave para um cozimento lento e hipnótico. Quando o tempo quebra, é o som dos galhos secos em delicado incêndio. Pelo pontilhado chegamos a uma área onde as coisas despencam em um vácuo que passa despercebido. Quebramos esses galhos – e ali mais no fundo, enquanto a redenção não chega. Alguns galhos tombam queimados, outros apontam em riste para todos os pontos que as dimensões de uma floresta são capazes de sustentar. Temos de quebrá-los para continuar a travessia que não queremos percorrer. Por aqui não podemos passar. O único modo de partir os galhos é com as mãos secas, e refazer todo o percurso. Vamos adiante, quebrando aqueles galhos? No quintal? Na floresta? Vamos adiante, não olhe para mim: o vento. Uma ostra em cada olho. Vamos, me ajude! Rompa os galhos, aqueles galhos ali em cima, aqueles galhos mais no alto. Não! Não dentro dos ossos! Por deus que não... Ali no alto, sim, isso. Os galhos sim, os troncos não! (afinal, quem pode ser amado no interior de um tronco?). Os galhos mais frágeis (os galhos são a própria floresta existindo em flor suave). 

Da radiação escapa uma faísca que incendeia nossos cabelos com muito cuidado, e confundimos o calor excessivo com uma enorme doçura que ganhamos mesmo sem merecer. Com o cérebro em cinzas, adormecemos durante seis dias e temos catorze sonhos muito saudáveis com: ostras em lata, gatos vazando sangue, barrigas abertas em formato de “U” que ninguém se dispõe a costurar, crianças carregando gansos pelo pescoço, possibilidades fechadas, pessoas rindo sem posição numa mesa, etc. Depois de seis dias acordamos e, diante do espelho, enxergamos a resposta estampada na testa: nós passamos sempre, até o ponto em que nos tornamos um outro. A informação assusta – rimos de nervosismo e alívio. Daqui é impossível proceder, mas também uma solução pode brotar incólume (especialmente para nós, que sempre nos recusamos a ter uma vida além da nossa). Agora o conforto cresce dentro do silêncio como um bolo no forno. A festa logo atinge seu ápice. Já quebramos todos os galhos possíveis e, antes que os outros cresçam, dobramos as camadas de água morna por um perfume que preencha de uma só vez as horas insossas, mas sempre em silêncio: Jasminum (em silêncio), Melissa (em silêncio), Matricaria (em silêncio), Camellia (em silêncio), Rosmarinus (em silêncio), Malus (em silêncio), Illicium (em silêncio), Humulus (em silêncio), Hypericum (em silêncio), Lavandula (em silêncio), Cymbopogon (em silêncio). Cinnamomum (em silêncio), Elettaria (em silêncio), Zingiber (em silêncio), Vanilla (em silêncio), Hibiscus (em silêncio), Syzygium (em silêncio), Laurus (em silêncio). Fim. 

Tivemos um grande momento rodando por esses arbustos mais altos. Aliás, foi o melhor momento que já conhecemos, por isso agradecemos-lhes: obrigado por nos fazer afundar – nos lodos mais mórbidos! Por deus do céu... Obrigado. Seguramente o momento mais agradável que conhecemos foi todos eles rindo e dançando conosco em nosso inferno, e a festa foi simplesmente exemplar. O dia de hoje termina e a radiação toda diminui após penetrar cada poro, cada célula, cada vaso, cada gérmen de tumor. Amanhã o procedimento recomeça. Esperamos ansiosamente com olhos úmidos que mal se fecham de tanta interrogação. 

*

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Inventário de viagem


 
Assim que pusemos os pés nas terras gélidas, tivemos uma grande ou pequena surpresa ao perceber que, enquanto estivemos fora, as plantas quadruplicaram de tamanho, os gatos engordaram sobremaneira, as rachaduras da parede chegaram silenciosas até o chão e irromperam em tufos sísmicos, etc. Os olhos sonambúlicos, porém, continuam intactos, ainda que cada vez mais pálidos. Entramos em contato com eles numa experiência especular. Nada foi dito.

Os cadáveres ainda dormem no berço/os talos dos brócolis se desmancham macios. Retiramos cada ostra da água com cuidado, mas simplesmente não pudemos metabolizá-las. Todos os dias ali dentro foram o mesmo dia, e todos os anos foram o mesmo ano. Não soubemos apurar com eficiência se a irrazão na qual adentramos com moderada intensidade é aquele lago habitual de nonsense do qual nunca conseguimos de fato escapar, ou se se trata da forma atual e mais bem acabada da própria razão. Não importa. A realidade é toda fragmentada, vazada, maior que ela mesma, e nenhuma teoria coerente é capaz de apreendê-la de forma adequada. A falta de sentido, contudo, não é algo derradeiro, mas sim a via pela qual tombamos na realidade. Por vezes a falta de sentido é uma lousa lisa e escorregadia na qual as coisas não conseguem grudar. Por vezes, porém, as coisas grudam. Olhamos abismados para o mosaico quase compreensível que se forma e, ainda assim, o mosaico não é o sentido. Mas é que essa etapa não anula a etapa anterior. As coisas não preenchem a falta de sentido assim como móveis preenchem um cômodo. Uma coisa não está nem antes, nem depois, nem sobre e nem embaixo da outra, e sim ao lado. Uma não é sem a outra. Oscilamos desesperadamente entre elas sem saber que a verdade não está fixada em um dos lados, mas na travessia entre eles. A travessia é a própria realidade, e não há oxigenação apropriada. Atravessamos roucos e tontos para o outro lado enquanto as horas derretem. Recolocamos as ostras na água antes de voltar (elas choram enquanto dormem e nos colocam pouco a pouco no mais intolerável estado de nervos). As coisas são sempre pontudas e um pouco exaustivas. Em desespero, descobrimos o balcão dos ossos e recobrimos imediatamente antes mesmo de inalarmos o bolor.


Por fim, coletamos alguns objetos para trazer conosco para o lado de cá: alguns quilos de concreto esfarelado, sementes da falha geológica incrustada nas paredes e dois crânios murchos que guardamos embaixo da cama para que velem nosso sono. Trazemos também muitas perguntas mornas e úmidas dentro de um cobertor, e depois de dias e dias ainda não encontramos respostas. Deixamos os talos e as ostras, não há lugar para acomodá-los. Deixamos pessoas, pedras e olhos fantasmáticos. Trazemos junto dois pares de olhos que nos olham e amam em silêncio e carregamos sempre no bolso como amuleto. Todo o resto é disforme e não encontra palavra para caber aqui.  

quinta-feira, 12 de março de 2015

Saída de emergência



1. Antes

Ontem acordamos em um buraco que um sonâmbulo cavou em segredo. Ele disse: não estou interessado. Depois disso o planeta caiu/o sangue coagulou. Ele estava no vento/passava no rosto um tufão. O ar na praia também é salgado. Os corpos emboloram na calçada. Trazemos os cadáveres para o berço/cobrimos com um pano sujo o balcão onde os ossos perdem sozinhos a poeira. A secura do dia levanta como uma tosse. A música que vibrava no ônibus que tremia. Ele disse: o ar na praia é salgado e o tufão (conforme o vento venta). Respondemos: moramos na praia e nossa casa está rachando. Começamos, enfim, a apalpar a realidade sem pressa. Um amor pelas coisas e pessoas infelizes que cresce até não poder mais. Sentamos por um instante e observamos os detalhes de um corpo vivo que envelhece. Os cabelos frágeis se desligam do couro e planam durante segundos no ar pesado até caírem numa velocidade inferior à da gravidade. Os fios soltos compõem um mosaico desafinado no chão. Cobrimos o marasmo com nossos finos fios de cabelo inutilizados. Rompemos os anos num piscar de olhos. Nenhuma vontade é maior que a de morrer sem se reconciliar. Não entendemos nossa própria linguagem e nem a dos outros. 

2. Depois 


Cavamos um túnel no quintal e escapamos ainda com a poeira do fracasso colada à retina. Nos espatifamos em ostras sonolentas (o instinto de sobrevivência ordena que afundemos antes que o assoalho esteja coberto por fios em silêncio). Cavamos um buraco onde plantamos os destroços, que nem sequer precisam de adubo para brotar. Não tememos mais as memórias cáusticas, o tempo passando, as cavernas tumorais, etc. Por um átimo de segundo olhamos para trás e a massa morna se aproxima em passos suaves, quase sem peso. Ele nos olha deitado. Nós o esmagamos. Nada deu certo. Nós o esmagamos. Olhos amarelos nos olham. Nós o esmagamos. Nós temos de perder. Depois as coisas se amontoam insones e piscando sobre a sombra redonda. Não entendemos. Trocamos a comida de filhote pela de adulto com a esperança de que ele cresça mais rápido e não precise sofrer. Os olhos amarelos agradecem mudos e também umedecem. Vamos embora sem dizer uma palavra sequer. Cortamos os ombros, as cebolas, os eclipses, os rostos suaves e sérios. Não sabemos como viver desse ponto em diante. Os olhos amarelos ficam pequenos no horizonte, porém não somem. O cheiro macio, o triângulo inscrito no rosto, a barriga tenra e morna. Aglomerados numa memória rachada. Trazemos conosco o recheio dos olhos amarelos. Pulverizamos na casa/cresce um oco frio doloroso na espinha (que só um grito abafa). Os destroços brotam e pisoteamos freneticamente para atingir a raiz. O passado não mais se reconhece como catástrofe (um sol possível surge quase líquido de tanta timidez). Por ora respiramos resolutos e aliviados. Sentamos e aguardamos até a próxima parede rachar.