segunda-feira, 28 de outubro de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

Sobrevivência no escuro

 

Os dias nos derretem pouco a pouco. Iniciamos nosso ritual sabático que nos conduzirá a uma infelicidade mais suave e indolor que a habitual: espalhamos pedras pelo chão bruto, coletamos meteoritos numa peneira, vestimos os casacos nos sapos, arrancamos nosso pâncreas com um pegador de macarrão, fritamos os pâncreas das crianças e, durante todo o processo, nos esquecemos de que deveríamos ser felizes. Choramos pelos dias e horas que se desmancham e pelos sonhos atoleimados no quintal. É inevitável uma dose de comoção. Depois cozinhamos crânios humanos, flores incolores, pequenos repolhos, crianças antigas, sonhos enlatados, olhos e beiços azuis. Fazemos tudo isso pela nossa sobrevivência. Há pessoas que encontram a felicidade dentro da tristeza circundante. Nós simplesmente não fazemos ideia. Somos iguais a eles: não nos importamos em ser infelizes, por toda a vida. Repetimos para nós mesmos inúmeras vezes: a tristeza não importa, o que importa é o mundo: os carros atravessam sem pensar, as pessoas vivem e envelhecem, as árvores despencam com os temporais. Mais nada. Se há ou não relâmpagos, se as casas caem ou não dos barrancos, bem, então podemos começar a viver? Não. Não é possível realizar esta inferência. Tudo o que temos hoje para viver são as pedras, os meteoritos, os olhos azuis, deus e os demônios.

O que pesa para nós, em primeiro lugar, é a dificuldade das horas, das coisas, das pessoas, etc. Olho para as rachaduras da parede e sei que elas são difíceis. As pessoas são difíceis quando existem e caminham. Estabelecer ou aprofundar contato com elas também é difícil. A dificuldade ao longo de milênios, juntamente com os fracassos e as perdas, cristaliza-se em pedras. Os demônios nos oferecem resistência e consolo diante das pedras. As pedras são nossas escolhas mal feitas. Mesmo quando muito antigas, elas incidem sobre nós por toda a vida. As pedras depositadas no jardim, ao contrário do que pensam as pessoas, não são tudo o que há, mas apenas uma espécie. Pois há também os meteoros e os meteoritos, que são pedras cósmicas. E há também as pedras radioativas e cancerosas sobre nossos ombros. E também as pedras vulcânicas esfuziantes. E também as pedras submarinas, salgadas e desbotadas. E há também pedras vulcânicas submarinas, que não existem, embora sejam possíveis. Por exemplo: quando há pedras sobre nosso peito, mal conseguimos respirar. Nos lembramos daquele lugar, daquele lugar lá no alto, mais uma vez, mais uma vez. E não adianta pra nada. Quando estamos inquietos ou desesperados, presos sob uma rocha, os demônios nos ligam de madrugada, e suas vozes etéreas adentram com facilidade nossa cabeça oca. Eles nos dizem com suavidade: “fuja, fuja para sempre. Esqueça, esqueça para sempre. Corra apenas atrás do que você acredita”. Então respondemos em prantos que não acreditamos em nada, ao que eles replicam: “Corra apenas atrás do que você não acredita”. Decidimos não correr e aceitamos, relutantes e sonolentos. Então dormimos e, ao descermos ao inferno, respiramos melhor. Morremos por algumas horas, e a casa, que normalmente é um marasmo, torna-se quase tolerável. É quando recebemos a visita dos meteoritos, que são a esperança morta e cintilante no céu. Dentro do sonho as coisas explodem com maior intensidade. Tornamo-nos uma só pessoa e enfrentamos a realidade de modo certeiro e impreciso. Essa única pessoa desabafa sem pudores: por que não sei reagir aos cometas? Por que não sei caber nas situações dos outros? Por que ainda penso que preciso de um estopim? Por que os anos passam e, no entanto, não saem de mim? Pois bem. Há várias respostas possíveis. Trabalhamos com várias possibilidades, e nenhuma delas é possível. Depois de tantos questionamentos, sonho por um instante com as coisas como elas deveriam ser e, quando acordo, despenco novamente para a realidade velha e lascada de muitos eus. Quando nos damos conta de que já não estamos mais dentro do sonho, lamentamos e imploramos para que nos deixem estar calmos e sonolentos, pois já estamos pagando pelo que fizemos. Estamos permanentemente em estado de desconforto profundo.

Não há comunicação possível. Ele nos deixou abruptamente, sem respostas. Ele nos olha e diz: fodam-se! E no fim das contas está certo! Por deus que ele está muito certo. Pergunto-lhe: onde você se meteu? De novo: onde você se meteu? De novo. E ele continua certo, para sempre. Certo dia bebemos um chá tão rosa, tão magenta, tão vermelho. Depois houve o dia em que o frio era intenso e as risadas nos faziam esquecer que havia o mundo. Tremíamos de felicidade e, contudo, não éramos felizes. Ainda bem que hoje os dias por lá estão altos e com sonoridades sofisticadas. Ao menos é o que se espera. Retorno o telefonema que não recebi e digo-lhe: por que o vinho e o livro? Não obtenho resposta. O livro nos diz que não há e nunca houve esperança. Mas já sabemos disso há tempos. Pergunto-lhe em seguida: o que se pode dizer sobre estar frio e já ser outubro? Ele diz: foda-se. Sorrio e volto aos meus afazeres. Preciso terminar de decepar a cabeça das galinhas e das crianças. Faço tudo com tanta doçura que até parece que estou dormindo. É um dos raros consolos que tenho, pois os dias seguem mais esqueléticos que meus ossos engordurados. Os dias são esqueléticos e somos incapazes de viver em sociedade. Indignamo-nos com deus e o mundo, e estamos atravessados de uma ponta a outra pelo silêncio. Como podem os tumores, ao crescerem, serem um “outro” e, ao mesmo tempo, nós mesmos crescendo dentro de nós e cheio de nós? Revoltei-me com deus e o mundo quando vi que seus tumores espalhavam-se por dentro e por fora, causando-lhe dor insuportável e obrigando-lhe a enfrentar a frieza de uma família podre como nem mesmo um cadáver consegue ser podre. E é completamente impossível que deus possa existir. Mas isso todos nós em sã consciência já sabemos. Não faz sentido existir deus nem nós. Deus, você que é uma estátua morta e lascada, por favor, sente-se conosco. Conte-nos sobre todo o sofrimento humano desde o início da história da humanidade, todo o sofrimento que você assiste com olhar sádico e sorriso malicioso, sem fazer nada. Deus, o altíssimo deus, spangle maker, esqueceu-se de nós. Esquecemo-nos dele antes. Deus é um torturador, ele vive à base de sangue coagulado e grão de bico. Deus é uma farsa tanto quanto nós. Por favor, venha até nós, abençoe nossas barrigas oleosas, abençoe nossa ignorância infinita, por favor, venha até nós em forma de neblina. Tenha piedade do deserto glacial infinito dentro de nós. Por favor, venha e sente-se ao nosso lado. Conte-nos todas as mentiras de que precisamos para sobreviver e, quando finalmente pudermos viver, conte-nos as verdades. Venha até nós transfigurado numa salvação alegre, num tronco de árvore alegre, numa criança decepada alegre, num passado vertiginoso alegre, num reencontro com defuntos alegre. E perdoe nossa falta de bom senso, de sanidade e de coerência para nos expressar.