domingo, 17 de outubro de 2010

A Desconstrução

 

A primeira pessoa chega carregando uma bolsa cheia de cacos de vidro. O dia do aniversário passou, as mangas caem podres das árvores, os helicópteros se arrastam silenciosos. Senta-se um pouco com uma xícara de chá preto meio morno e pensa em tudo o que está havendo, desde os pequenos fatos que embolam a língua, até os contatos maciços (mas abstratos) como caixas de vento prestes a explodir. É tudo imperceptível, conclui, e a vida segue sem cor alguma. Ela pensa assim: não gostaria que ela se aproximasse subitamente, pois a primeira atitude cabe a mim, mas só tomarei alguma atitude, no entanto, se souber que serei bem correspondida. A segunda pessoa está do outro lado da cidade e olha as bolhas que o asfalto forma quando o dia alcança sua metade e pensa a mesma coisa que a primeira pessoa pensou. Resultado: ninguém toma atitude alguma e elas não se encontram. Ainda assim o dia segue: a economia se constrói segundo seus próprios ritmos, polvos se movimentam com facilidade nas águas geladas do Pacífico, caminhões se acidentam na serra do mar. A primeira pessoa pensa que, para fazer uma desconstrução, melhor é começar não falando. Só que sem falar, a criação é impossível. Ela pensa que a melhor forma de contato humano é aquela imediata e pouco durável: aquela pessoa que te olha duas vezes na rua e se vai. Isso porque a ideia que fazemos da pessoa não corresponde de forma alguma ao que a pessoa é, é pura constelação de sonhos. O contato duradouro tende a estragar o conteúdo imagético e superficial que, embora importantíssimo, é constantemente negligenciado. Nós que, buscando a essência, deixamos de sentir aquele afundamento no peito que é a endorfina pulsando, e que se dá pela superficialidade das coisas. Não que o contrário seja obrigatório: da profundidade do contato não se segue necessariamente a superficialidade do sentimento, mas receio que haja uma séria tendência oculta. Porque a dimensão do amor, pensa ela, é a dimensão de um sonho, e um sonho é, ele mesmo, apenas sombra.* Mas pensa que há alguma chance, e isso na verdade estraga sua vida: o fato de ser jovem e haver chance. Teme, no entanto, o dia da virada dos quarenta pros cinquenta, em que se questionará aflita: Como fui irresponsável ao ponto de permitir que o tempo passasse dessa maneira? Dali em diante tudo será compactado em uma aposentadoria minúscula, em consultas médicas regulares e no questionamento inevitável: Será que viverei para ver a minha morte? Eu não sei viver, pensa ela. E quem é que sabe? Eles sabem. Ora, sabem viver aqueles que pensam que sabem viver, mas nós que admitimos o fracasso estamos já condenados a nos encantar com o novo sabor da gelatina. Ainda assim, eu vivo, e vivo porque sou jovem. Formula então uma indicação: não procurar ninguém por seus supostos atributos naturais, mas procurar aquele que melhor souber construir e utilizar sua máscara. Sim, é algo que pode ser feito. Não que esta indicação nos conduza necessariamente a melhores juízos e a uma compreensão mais aguda, porque o que mais nos assusta, sem dúvida alguma, é o excesso de amor, e não sua falta. Estamos absolutamente acostumados com sua falta, e não assusta. Não assusta porque na vida diária, na vida prática mesmo, a neblina vai se dissipando e nos tornamos esclarecidos sobre aqueles aspectos da vida que queríamos manter até o fim em segredo, e nada mais sobra de oculto nas coisas mundanas e nas coisas divinas. Ocultos somos nós mesmos. A primeira pessoa decide então manter-se oculta e fazer uma desconstrução. Não de si, mas da segunda pessoa. Arrancou de si todas as memórias que possuía, misturou gin e limão e foi até a janela apreciar o movimento dos carros antes que a novela começasse.

 

* Hamlet, Ato II, de Shakespeare.