domingo, 19 de março de 2017

depois da realidade



E as vespas perdidas entre os grãos, e cada coisa acontecia atrás da porta. Todo dia era um ritual para encaixar-se como pessoa, fazer parte da natureza circundante, pertencer ao osso vivo e vibrante de cada hora. Muitas coisas poderiam ser precisamente a ostra que nosso mundo não tinha. Há inúmeras coisas como possibilidades dentro da caixa que paulatinamente trava ao ser aberta. A linguagem precisa ser retirada de dentro do osso. É preciso, ainda que o vento tenha desmanchado o telhado, chutado as calhas e estremecido a estrutura do galpão. por deus que podemos. de algum modo estar dentro da ostra, e também podemos participar. Desde que estivemos impunes por uma terra seca, na qual cada coisa acontecia atrás da porta até morrer. As plantas, por exemplo, cresciam atrás da porta até estiolar. Apenas o corpo presente era um material contra a violência. Estalando cada coisa pela ponta até o ralo. Assim o vapor seco crescia; o rosto amolecia frágil, sem sono. Sem esteiras na porta, sem a decrepitude que engatinhava. A planta de isopor crescia sobre uma folha de papel até despencar. O osso aparecia suave e sem medo. sem receios. O dia amamentava as urtigas. Ao final da tarde e com avanços múltiplos e imperceptíveis que formavam um bloco único que era a própria decadência silenciosa. Os pequenos progressos apareciam como marcas na pele que não podiam ser retiradas com a pinça. A cólica subia até o último osso da garganta, escorria das flores e encharcava a terra arenosa. Pela primeira vez estruturado como edifício, visto dos múltiplos ângulos por um olho distante. Enquanto isso eu me divirto muito comigo mesmo e até saio no pátio. Ali, murado e repentino, uma espécie de segredo aderia ao concreto e aos carros congelados. Nada podia estragar o momento em que as bochechas aqueciam com o vento frio senão talvez a pergunta interrompida que voltava raspando. Depois mais tarde visitava no interior do sono com patas e unhas incompreensíveis. E dormir não quebra tudo? Ou apenas rearranja o mosaico quebrado da realidade? O sono comprime a realidade rachada e o sonho pulsa as fibras desreguladas da memória. A linguagem precisa ser arrancada com os nervos, veias, ranhuras e calos inespecíficos. Abre-se a janela no escuro mais fundo da madrugada e recolhe-se o sinal fresco e salgado. Estamos absolutamente encantados com a coisa que o vento produz. Mesmo um tremor de frio é só mais uma quinquilharia no cômodo de um sonho. Somente quando aberto de madrugada, ele rompe o frio fino que esvazia. Talvez estejamos dentro de uma hora muito lamacenta. talvez o fundo do ralo seja só um espelho que resiste. talvez o que esteja depositado em um prato raso rachado seja a opção mais simplória de um projeto que não deu certo. Assim, cada parte resiste sem conseguir abrir ou brotar. Talvez nem mesmo o pequeno urso seja a ostra? A roda gira novamente em sentido contrário, mas dessa vez impulsionada apenas pelos olhos parados na pedra. Cada grão de arroz da tigela é retirado em câmera lenta. uma vespa entre os grãos sente um esmorecimento. não vai dormir não, morceguinho?. Talvez a tampa do fundo lamacento queira saltar de vez. A dor nos ossos agora é macia e não corrói. O corpo morto também é material contra violência? Individuado, marcado em cada poro, sem esquecimentos. protegidos do desamparo. Seria assim depois de milênios sem cor, seria assim também sem identificar a cor dos milênios gotejando em silêncio por um cano da tubulação. Camas que nos desapontam e adoecem com o peso. Os anos passam atravessando e rasgando uns aos outros. Os ossos pulverizados são depositados na bandeja de plástico descartável. Olhos claros ou escuros observarão a urna até que eles mesmos sejam pulverizados sem constrangimentos. Tão somente os olhos amarelos – sempre vivos de sono e ternura – resistem depois da realidade. entram em uma espécie de casa, levantam o sol pela manhã, deitam e dormem sobre as plantas no vaso.