quinta-feira, 26 de julho de 2018

Eu fico feliz que você esteja dormindo



Nenhum osso faz parte de mim, nem mesmo esse que uso para recolocar as coisas nos cabides. Sento no asfalto, recolho meus calos, espero evaporar todas as chances, espero o vapor arrefecer. Cruzo a passagem sem qualquer ruído, começo a desaparecer. Enquanto isso ele me olha, e meu contorno é apenas espesso e ruim (não posso acreditar que fui deixado aqui com as cabras, com os patos assustados, com as pastilhas em flor, com os dromedários, etc. encapsulado, ostracizado como nenhuma outra hora degolada nos relógios).  

Ele observa minhas varizes. eu observo e não me calo. Ele olha, eu desvio o olhar quase sem saber. a construção parece mole. Enquanto isso, olho atentamente seus espasmos. ele apenas resiste, nada parece coexistir. De repente, chega um osso redondo e me assusta. O cavalo parado me azucrina, essa estria azulada me coloca em disformidade com os outros espécimes do mostruário. Percebo e quero apenas engendrar novas horas para cair. Esse massacre carinhoso é o que nos coloca depois da realidade, submersos na calçada, se ainda não choveu. O horizonte é bloqueado, não pude reviver em paz. Ele me olha sem perceber minhas sobrancelhas. Não devolvo nenhum olhar que não me foi dado ou oferecido. Já avisei que vou morrer com muito cuidado e esperança, e até lá continuar ciscando como todos, encontrando insetos para preencher o tempo que é só o imenso vômito em que nadamos com muita assepsia. Para chegar ao instante final e agradecer a todos, enquanto minhas narinas já aquecem com o sono hipnótico, com o tempo sendo comprimido até a espessura de um papel. Obrigado a todos que estiveram aqui, adorei estar vivo, fomos até a outra ponta do parque, cuidei de nossos pastos, dos ombros. Enquanto não acontece, nadamos em frente, com sangue nos olhos. Deus interfere maciamente em cada um dos poros, pedimos a Ele que não nos deixe perdoar nada nem ninguém. Meus olhos circundam o ambiente, cobrem todo espaço mal preenchido: uma lentilha, um espasmo, um quadro de algodão. A vantagem aqui é que ninguém me esmaga, a não ser a coluna de ar sobre meu crânio. Dormimos durante o sereno, perdemos os joelhos para a maré fria. O vento úmido chega para mofar nossas entranhas. abençoar as crisálidas, as conchas presas ao véu da areia, o lixo oceânico, etc. As pombas comem a comida dos cachorros. Ele iniciou a floração pelos meus cabelos, prometeu que me cobriria para sempre e me deixaria dormir, então encostou a unha na superfície flácida de uma bochecha opaca e oleosa (a ternura envolvida apareceu camuflada, enfraquecida). Pego novamente uma outra fruta ou legume e encaixo em sua cabeça como uma coroa. ele não consegue mais rir ou não quer. Colocamos então cada espaço para afrouxar, sua fragilidade foi responsável por outras horas. Eu recebo seus sinais como um animal cansado, não canso de esperar. Quando chega o momento preciso, enfrentamos o que quer que seja com as quatro patas no chão. Ninguém pôde nos avisar, fomos os últimos a saber. Mas não posso esperar aqui para sempre. Tenho medo de que, ao ir embora, ele se torne um pássaro ruim. Empacoto as urtigas para comer mais tarde, reduzo a atenção até o mínimo necessário. Alongo minhas artérias, resseco a ponta do cordão. Me armo como uma ostra, uma aranha fraca. Decido não continuar. Precisamente nesse instante ele chega até mim e me mostra a chave inesperada, sem nenhuma cerimônia ou interrogação. Trago seus braços para o interior da sombra. Você tenta inutilmente fumar um palito de fósforo queimado. Não consigo entender um milésimo sequer de toda essa realidade imbecil. Retiro os fósforos de sua boca um a um, deposito embaixo da maleta para caso de urgência, para uma necessidade vindoura. Preocupo-me com as nuvens e depois com mais nada. As horas vão sendo catapultadas para depois e aqui nada permanece. Optamos juntos por cozinhar as próximas horas até o ponto de ruptura. Ele tomou minha mão, vindo de um ambiente calmo de mistério, eu podia sentir a vibração na outra mão. eu disse a ele que íamos de encontro ao inferno. Sentamos, vieram e fizemos o pedido. Alguma colocação percebida de perto, eu disse a ele que ninguém em uma mata tinha despejado aquilo sem nenhum furor – o que me fez lembrar imediatamente da noite da festa. Caminhando pelo campus escuro, vento seco, alguém surgia aos poucos de um ponto luminoso no descampado. Chegamos até uma parede de vidro, trocaram poucas, pequenas palavras, e voltamos. Hoje eu fico feliz que você esteja dormindo, mas naquele dia eu pude transformar cada carícia nova em um conforto nervoso, arquejante, impaciente. Eu previa a catástrofe, mas o momento era de puro cuidado. As mãos compreendiam, apesar do frio. Apenas ali naquela noite (que durou meio segundo) ou em outras. Não sei bem o que tiraram de mim. Quando ele virou e disse: “você simplesmente não existe!”, lembro que rimos muito ao perceber que, na verdade, isso nada tinha de metafórico. E que para sempre os acontecimentos seguiriam mais ou menos o mesmo circuito: ninguém se importa, bom apetite, coma seu ovo. Eu olhava os espelhos grudados em seus dentes, e algo foi tirado de mim. “você não existe” – ecoa macio, quase inaudível. Você não existe – mas nenhum de nós. Acaba com os meses acumulados, com os anos. Eles são pedaços de árvores. Eu peço encarecidamente para não morrer. Recebo um sinal de que um ou dois dias a mais podem ser concedidos. Uso ou perco a graça, exponho meus dentes, esfrego nas árvores essa coisa óbvia ou estranha, espero roer cada canto de memória, cada lembrança áspera. Fracos são os gestos simples, azuis. Ela me ensinou a sofrer em cada uma dessas etapas, eu admito que aprendi melhor do que deveria, reproduzo agora o peso agoniante. Ela me espera com um cálice, tremendo. Convidei o peixe para outro evento mais tarde. Trouxe os galhos um a um, em segredo. Pude macetar as outras crianças dentro do sono. Não existo porque fui enviado às rochas maiores. Rochas maiores, afastadas do chão. O bagre é quieto e não olha. Quando fui encontrá-lo no parque, sentamos na grama para conversar sobre as coisas que estavam crescendo, morrendo. Olhávamos absortos, ali estávamos nós, olhando a ponte ao fundo e por trás o pôr-do-sol. Era macio o dia, como uma folhinha. Havia coisas nebulosas, incômodas, o que não se poderia saber ou imaginar. Eu não acreditei que aquilo poderia ser uma coisa, que ele ou eu seríamos pessoas, que o gramado era um gramado, e assim por diante. Muitas coisas morrem porque falta quem acredite. Eu sabia esperar o tempo passar, pequenos eventos incompreensíveis preenchiam inadequadamente as falhas, eu extraía do lugar da cabeça uma sombra nova, entregava a ele para que se pudesse comentar algo rápido, sem viabilidade. Pouca coisa dita parecia viável. Quando a projeção mais mirabolante ela lançada entre nossas pernas, eu acenava, dizia que sim. Olhava os músculos soltos, a forma bruta. Sentados na grama, não havia nada de sensacional ou abrupto, nada seria capaz de romper o dia pelas pontas, pela metade, pois ali na passagem de ar o tempo seguia em direção às outras ruas até chegar no portão, no quintal, na garagem, na sala, na escada, no quarto, na cama. Um ruído alto não seria mastigado, seríamos dispostos para dormir como dois pequenos bebês roxos, assustados de sono (eu não tinha sono algum, mas uma concha ou ostra me fazia dormir, também o calor, os estrondos cada vez mais leves). Vinte e sete horas até morrer por completo, eu tenho essa graça (Ele lá embaixo me concedeu, e não devolvo), os demônios também concederam graças importantes, às vezes apenas retroativamente importantes. Outro dia ele tentou me convencer de que todas as espécies são igualmente evoluídas, já que bem adaptadas a seu respectivo habitat. Todas chegaram até aqui, e eu também. O universo já caiu em desuso. Mas não deixei nenhum animal para trás, não consegui caminhar sem minha semente, trouxe o avestruz, a ostra, o bagre que ainda me olho fosco. E cada história é tão mansinha! Eu não acredito. Peço silêncio para terminar. Uma euforia toma conta, sobe até a ponta de um braço, de um osso. Ele disse apressado que não podia se movimentar, disse que não poderiam continuar longe, mas. Façam silêncio, por favor! preciso colocar minha ostra para dormir. É impossível proceder dentro desse alarido. Eu peço que agora me ajudem. As horas acabaram, temos de iniciar o protocolo de desligamento, acionar as autoridades competentes, completar o ciclo e enxugar os olhos que escorrem.

Agora ele me ajudou a me enterrar dentro da cisterna. Pedi as cobertas, o molho evaporado, o espeto. Mas sem sofrer demais eu quero estar junto de você, e você também pode sofrer se quiser. Ele concedeu o aval. Sem pestanejar, compreendi com mais exatidão o espaço de todas as horas, de todos os animais maiores. Tomei cada um pela coleira, passeamos pelo bosque. Agora no pórtico com luz, estou com ele aqui na frente. Chegamos em casa e peço a ele que verifique as vigas no teto. Olhe e não espere desfiar. Senão, a casa cai em cima de nossas cabeças ineptas. Conceda esse espaço para sentar e viver, sem lembrar. Mas cada coisa não acontece, nunca. eu espero espumar o caminho para poder sair. Ele me dá a mão, descemos pelo barranco, por dentro dos troncos das árvores, extraio a polpa dos ossos, escorro o rosto pasmo de sono.