sábado, 23 de março de 2019

obituário tardio



Ontem ele saltou a janela trazendo na boca um pardalzinho murcho pingando sangue no tapete da copa. Seguia imponente em direção ao quarto para depositar sobre a cama a ave quase morta, quando foi interrompido. Lamentaram o ocorrido, tentaram remendar a situação. eu não lamentei. Segui o traçado em silêncio e celebrei a conquista, não quis parecer ingrato. Temi pela situação ao mesmo tempo em que me rejubilei sem consternações. Eu sinto pena que ele tenha de passar por tudo isso. Uma coisa crescente bloqueia a garganta e me engasga, distribuo os avestruzes nas fatias de pão. O perigo ronda as coisas mínimas. Eu percebo sua criança mais tarde: ela transborda e tropeça. aguardamos alguém com quem seja possível morrer. Eu tropeço em uma poça de sangue no meio do caminho/uma árvore retorcida brota dos joelhos de um homem morto. eu me estendo a sorrir por uma coisa doida, esquecida. Eu retorci os ossos com as pinças pequenas, rejeitei uma vida inteira, incendiei as provas e comprometi os próximos dias. Meu amigo repousa o ombro em minha face, digo a ele que não traga mais o trofeuzinho ruim pela estrada. Rimos até enxugar, e depois suspeitamos. Eu percebi o frasco vazio. Uma cabeça decepada agora é nossa amiga até o mais profundo, submerso. Terminamos logo no início, despejei o óleo de eucalipto sobre suas coxas e tornozelos. Diamanda e os ratos não me fazem mais nada, eu trago os galhos envelhecidos por todo corredor com força e sem apego, sem sustos. Então você me ajuda a trazer os galhos, eu reforço suas asas, você me paga com grãos de arroz carunchados. Retrocedo em cada sinal, cada bloco de tempo vazio. Você então fica calmo? Porque você está aqui, você até já está. Continua fervilhando, mas não importa o que aconteceu. Procuramos no obituário pela manhã as pessoas que desapareceram em todas as dimensões. Elas escaparam por diferentes ralos, foram colocadas em caixas de isopor. Você torceu meu pescoço e eu pude agradecer, assim o fiz imediatamente, devolvi as ostras fracas unidas pelo fio fino, inobservável. Aqui choveu o dia todo, mas ainda são duas horas. E assim mesmo é. Passei tão mal por não ter existido. As pessoas continuaram sustentando seus ossos enquanto caminhavam na rua, mas sem pestanejar. Eu estive ao seu lado sobre a porta, passei pela trilha de pedrinhas pálidas, saltei por cima de outra coisa que não identifiquei, fui até o pequeno pardal. pedi ajuda, implorei, falei (bastante cruamente), que não sabemos como continuar. Enrolamos um pequeno alpiste e, com as mãos, continuamos sem saber se ele conseguiria se alimentar mesmo depois de morto. E se fosse um grãozinho de milho ínfimo, quase molecular? Formamos outras roupagens para conter as orquídeas. Eu recorto meus lábios com uma tesoura sem ponta, conto os passos na escadaria, reencontro o ruído mesquinho. Eu endureci na cadeira, as pessoas chegaram pouco a pouco e me viram naquela situação. Espalharam rumores pela cidade, disseram que sou lúgubre demais (não sou), e que eu não viveria muitos segundos a mais, nem que tornassem a casa inteira uma caixa esterilizada (com que fundos?). Percebemos a ironia com um susto doce. 

Algumas coisas estão enterradas pela manhã. Um sol nascente, um espelho d'água. Meu corpo pesa com que peso? com que coisa somos destinados a continuar? por que continuar? etc. Escrevemos todas as perguntas com um giz escuro. Ela vem comigo pela praia, passamos por tudo. Cruzamos todas as faixas de areia que se entrecruzam como estradas, como arcos. Nenhum lugar tem alguma saída. Enquanto sintonizo o guarda-chuva no quintal como uma parabólica, você percebe como se pode continuar sentindo, pensando. Você carcome meus ossos como alguém que tem muita fome. Estamos acorrentados no porão. Eu digo que não quero participar dessa palhaçada. Eles me devolvem a confirmação de um regresso por precaução. Eu continuo parado e não tenho sono. Uma mão ou uma pata é depositada sobre meu ombro direito. Recoloco a poeira sobre os sofás. Você me diz, jurando com as mãos juntas (isso é patético), que o dia que nasce é outro, não o mesmo. É preciso acreditar, com certeza, pois um espelhamento acontece. Retiramos as palavras não ditas para não estorvar o campo de diálogo. Um pequeno ovo é recolocado no quintal. Por que você não me avisou que as horas estavam passando? a casa é ríspida, mas está de pé sem assombros. O filho não consegue chegar mais tarde, não fazemos com que sejam estiolados um a um. Somos esquecidos de repente, mas eu faço por existir. Não deduzo nada de cada situação. A nuvem não acorda, a palavra é ridícula. O gato está mancando. Sei enunciar pequenas frases, cheias de sentido. A vida é um orifício penoso. Fazemos uma festa ruim com as sobras. Eu tento me salvar, mas o resultado fica aquém do esperado. As lembranças não cansam de espocar e são reconduzidas a uma sala de espera úmida e insalubre. Não há formação de nuvens. Qualquer coisa me faz chorar com seus ossos, e eu consigo deduzir suas pálpebras se você não se mexer. Fique parado até minha eternidade chegar. 

Aqui nessa janela eu fico então conversando comigo mesmo, espero um sol pulular. Sem dúvida alguma, eu preciso pertencer. Eu preciso que me deixem pertencer, ainda que eu não queira. Nesse estofo macio eu posso me movimentar e criar meus dias. A solidão é fresquinha e não carece de mais nada. A palavra é tranquila, insípida. O pasto é largo e acomoda a todos. Eu então tento reconstruir meus ossos um a um. Espalho meus dias sobre a mesa para poder calcular. Você observa na janela uma coruja, um bicho de pelúcia macabro sustentado por um graveto. Eu receio estar sendo dissolvido num tanque de carpas sem perceber. Eu não represento uma ameaça a nenhum deles, eu fico aqui para sempre, eu conto os blocos de isopor presos em seus cabelos. Dou um beijo em cada um dos meus queridos, confio que a coisa racha por dentro, basta olhar e ver. Estou enrolado por dentro com seus dentes em meu colo. Eu choro em momentos milimetricamente planejados, eu esqueço. Você então me ajuda a esquecer um pouco mais. Peço a você que continue seu caminho. Percebo que não cumpri uma única exigência sequer, dentre milhares. Pela manhã eu aqueço e, logo que abro meus olhos, desisto. Quantos atropelamentos eu já não enfrentei? Vocês sabem. O lugar é fraco, eu posso segurar suas mãos enquanto isso, enquanto o tempo passa. Passa o tempo e o rosto afunda, a coisa morde. E é tão difícil deixar as manchas pela sala, e é tão difícil escrever... A ostra já está redonda. Eu consigo enxergar muito mais à frente. Perco meu papel no chão, imploro por alguma coisa que venha de cima. Pensa com a minha fibra sutil. Implode meus rastros para que eu não possa mais caminhar. Você acha mesmo que estou vivo? Você acredita? Caímos na gargalhada, rolamos na grama alta de tanto rir, uma face da grama despenca para o outro lado. Pessimamente somos ejetados para fora do planeta. não fiz nada por ela, e quanto tempo faz que conversamos. ela me dizia para existir. Sentimos também as correntes. Ela morre e não me avisa, ela morreu e ninguém foi capaz de me avisar. Você guarda meu lamento enquanto eu não puder morrer da mesma forma? O caminho agora segue fechado, você pode vir até aqui e ver. Eu fui cremado naquele dia junto dela, e minhas cinzas depositadas na tigela de iogurte e maçã. Eu não quero defender nada. Eu não quero estar prestes a morrer assim, sem avisar. Eu deixo um beijo para você aqui no final, eu não soube antes, não pude saber. Você entende que eu não pude saber? Posso vê-la em algum momento para me desculpar? Você morreu sem que eu tivesse tempo de me desculpar, sem que pudéssemos passar uma madrugada a mais sobre um tabuleiro, sobre a realidade que eu não fui capaz de cuidar ou entender. Você me encontra depois então para que eu possa me desculpar.