quinta-feira, 4 de setembro de 2014

 

All of the birds are laughing
Come on let's all join in

domingo, 23 de fevereiro de 2014

"A tarântula e o pernilongo"



Esse texto é uma proposta de interpretação de Have one on me, de Joanna Newsom. A questão central a ser desdobrada é o processo de rememoração do passado vivenciado pela narradora através de fluxos de consciência e da sobreposição de estados lúcidos e alucinatórios.

Primeiro apresento aspectos biográficos de Lola Montez (o eu lírico da letra) pré-1846, isto é, antes da chegada de Lola à Baviera. Depois, passo a uma interpretação ponto a ponto da letra, à luz dos dados históricos e biográficos coletados.

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Maria Dolores Eliza Rosanna Gilbert nasceu em Limerich, na Irlanda, em 1821. Concluiu sua educação formal em Paris e estudou dança na Espanha. Passou por países como Escócia, Inglaterra, Índia, Espanha, França e Polônia antes de chegar na Alemanha, em 1846. O Teatro Real de Madri e a Ópera de Paris foram dois dos lugares onde ela foi prestigiada por suas apresentações. Tinha cachos castanhos e olhos azuis, descritos por um jornalista polonês como “possuindo todos os tons de azul das dezesseis variedades do miosótis”. Mentia compulsivamente. Dizia a todos que nascera em Sevilha em 1823, e que se chamava Maria Dolores Porres Montez. Ficou conhecida por todos como Lola Montez. Segundo inúmeros relatos da época, ela não dançava (tecnicamente) bem. Entretanto, sua postura voluptuosa e rosto e corpo deslumbrantes causavam furor em todos os lugares por onde ela passava, e o grande público não se importava com as limitações de sua coreografia. Em muitas das cidades europeias por onde passou, Lola fora reconhecida como uma das mais belas mulheres de sua época. Era um ímã para os homens, mas gostava de mantê-los à distância: a decisão tinha de ser dela.

Misturava-se com a aristocracia internacional e com a realeza. Foi assediada por homens poderosos, dentre os quais o vice-rei da Polônia, que ofereceu-lhe uma propriedade rural, um título e inúmeras joias. Ela recusou. Ele zangou-se, ameaçou deportá-la e infiltrou subordinados em sua apresentação para que a vaiassem. Forçada a interromper o espetáculo, Lola desceu e contou à audiência polonesa as ameaças do vice-rei. Resultado: foi aplaudida e escoltada por uma multidão de poloneses. Este incidente coincidiu com um dos muitos levantes de Varsóvia contra o domínio czarista.

Depois partiu para Paris, onde namorou Alexandre Dujarier, um dos líderes do Partido republicano francês. Era extremamente inteligente e falava 9 línguas com algum grau de fluência, segundo relatos da época. Frequentou círculos boêmios intelectuais em Paris, nos quais frequentemente era a única mulher admitida. Foi amante de Franz Liszt, conheceu George Sand, Alexandre Dumas, Balzac e Victor Hugo. Com as discussões dos círculos que frequentava, Lola tomou conhecimento das massas oprimidas e do poder manipulador dos jesuítas. Era fascinada por política e tornou-se uma republicana assumida.

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Se há ou não razões autobiográficas para J.N. ter decidido compor sobre Lola Montez, e mais especificamente sobre a relação entre Lola e o rei Luís I, é algo sobre o qual podemos apenas especular, e que evito nesse texto. O motivo: não há informação suficiente para embasar conexões entre a vida pessoal de Lola e de Joanna, praticamente nada além do fato de o condado onde Joanna cresceu, localizado no estado da Califórnia, ter seu pico mais alto e dois lagos na Tahoe National Forest nomeados em homenagem à Lola, que viveu na região entre 1853 e 1855. 

Conforme palavras da própria J.N. à época do lançamento do disco (que leva o mesmo nome da música), a narrativa presente em Have one on me procede de um estado mental da narradora, que oscila entre lucidez e uma espécie de alucinação febril. Esses dois estados não são, contudo, rigidamente contrapostos. Em ambos é possível notar um tom intensamente nostálgico e emocional, em que sentimentos múltiplos (e muitas vezes contraditórios) se misturam para compor não apenas a autocompreensão que Lola tem de sua vida, mas também, em certos momentos, a compreensão que os outros (os cidadãos bávaros, os jesuítas, ou mesmo o próprio rei Luís I) têm a respeito dela. Essa oscilação leva muito frequentemente à interpretação de que a história é narrada ora por Lola, ora pelo rei, ora pelos “outros”. Essa visão me parece equivocada. E pela seguinte razão: há uma clara tensão entre a autoimagem de Lola e sua fama, e essa tensão parece ser descrita do ponto de vista da própria Lola, justamente em um momento em que ela é capaz de fazer uma retrospectiva de sua vida que articula seus principais aspectos, mesmo aqueles sombrios e aflitivos que ela, quando jovem, não podia admitir ou mesmo visualizar adequadamente.

A hipótese mais concreta que encontrei foi a de que a narrativa parte de um estado alucinatório vivenciado por Lola nos dias finais de sua vida, no Asteria Sanatorium de Nova York, em dezembro de 1860. Nessa época, ela já tinha o lado esquerdo totalmente paralisado, possivelmente em decorrência de sífilis cerebral. Entretanto, se essa hipótese é a mais plausível, ela não é, contudo, inteiramente consistente, e tentarei mostrar o porquê mais adiante no texto. É possível pensar também que esse estado de insanidade seja decorrente de uma embriaguez, pois há referências ao abuso de álcool ao longo da música (sobretudo na parte final). Na dúvida, prefiro tomar como determinantes as palavras da própria J.N.: “alternating between kind of a fever and a breaking of the fever”.

Em todo caso, não há problemas em afirmar que a narrativa é dividida em três partes distintas: um momento inicial e um momento final de uma aparente lucidez (os cerca de cem segundos iniciais e os sessenta finais), e entre eles um longo período predominantemente alucinatório e repleto de oscilações de humor, em que Lola relembra momentos significativos de sua vida. É preciso marcar duas coisas: primeiro, não se trata de um momento estritamente alucinatório entre dois momentos de pura lucidez, pois a tese a ser defendida é a de que esses dois extremos se mesclam justamente para possibilitar a rememoração da verdade do passado (embora talvez se possa dizer que os momentos inicial e final sejam mais lúcidos, até mesmo do ponto de vista da melodia e da entonação). Em segundo lugar, paradoxalmente ou não, a abertura e o fecho da música, isto é, os momentos aparentemente mais sóbrios, são os de mais difícil compreensão, o que também colabora para a tese de que é só pelo recurso a distorções e imagens absurdas ou hiperbólicas que Lola consegue relembrar aspectos (em maior parte dolorosos) do passado. Alguns deles, como veremos, serão ficcionalizados por ela, mas trata-se de uma ficção utilizada para fazer a verdade transparecer com mais nitidez. 

Para ser mais específico, o bloco intermediário da música parte de uma nostalgia eufórica que acompanha a chegada de Lola à Baviera, passa por uma rememoração da relação entre Lola e o rei Luís, com a qual a narrativa vai ganhando um peso colérico, e arrebenta no final do bloco intermediário com um momento sarcástico, amargo, efusivo e quase que inteiramente fictício. Mas é importante marcar que a narrativa é toda temporalmente descontínua. Há saltos abruptos entre fases distintas, às vezes dentro de um mesmo verso. Tentarei, contudo, na medida do possível, encaixar os elementos em uma ordem cronológica. Para isso, pularei a parte inicial e começarei pelo bloco intermediário da música. Depois volto ao começo e engato junto o final.

Não é fortuito que Lola comece seu processo de rememoração do passado com uma menção à sua famosa “dança da aranha” (“here’s Lola – ta da! – to do her famous spider dance for you!...”). Trata-se dos anos dourados de sua vida, em que ela obtivera considerável prestígio com suas apresentações de início de carreira em cidades como Madri, Varsóvia, Berlim e Dresden. Em sua mais famosa coreografia, várias aranhas de borracha preta presas ao vestido de Lola caíam no chão enquanto ela se contorcia e fingia expressões de horror (há relatos de que em certos momentos ela erguia sua saia tão alto que a audiência podia perceber que ela não usava nada por baixo). Por fim, ela esmagava as aranhas com os pés, acompanhando o ritmo da música.

Mas aqui, essa lembrança já é trazida para o contexto em que Lola conhece o rei Luís I da Baviera, em 1846. Lola tinha 25 anos quando chegou em Munique. O rei Luís I, como tantos outros antes dele, ficou fascinado ao conhecê-la. Na letra, Lola se refere a ele como daddy longlegs (termo usado na Grã-Bretanha para um certo tipo de mosquito ou pernilongo), e se refere a si mesma como uma tarântula. Essa imagem pode ser explicada a partir de diferentes ângulos. Primeiramente, daddy longlegs” também se assemelha a outros vocativos de natureza paternal evocados na música (“pretty papa”, “pa”). Luís I era 35 anos mais velho que Lola, e vocativos dessa natureza, ao menos na língua inglesa, podem carregar alguma conotação sexual. Há interpretações também no sentido de que haveria aqui uma referência ao sentimento da falta de uma figura paterna, já que o pai de Lola morrera de cólera quando ela ainda era pequena. Em segundo lugar, Lola vai se referir a Luís I também como um “six-legged millionaire”, o que favorece a compreensão de daddy longlegs como pernilongo (é que, confusamente, esse termo também pode remeter a uma ordem ou família de aranhas. Seria Luís, afinal, uma aranha também ou um pernilongo?). Uma coisa é certa: um pernilongo seria uma presa fácil para uma tarântula, e essa foi a visão da relação entre Lola e Luís difundida tanto na época quanto posteriormente pela maioria dos biógrafos, em outras palavras, a de que Lola era uma manipuladora insensível em busca de poder e dinheiro e que usou o rei Luís exclusivamente como meio para esses fins. J.N. desconstrói essa visão. Uma biógrafa certa vez afirmou: “existem muitos relatos do fascínio do rei Luís pela dançarina, mas poucos fazem uma tentativa sincera de explicar os sentimentos de Lola pelo rei”. Se anteriormente deixei aberta a questão da razão do interesse de J.N. pela figura de Lola Montez, talvez essa seja uma possível resposta: tratar-se-ia de uma tentativa na contracorrente da reconstrução biográfica “canônica”. Mas essa é apenas uma especulação.

Na verdade, o relacionamento de Lola e Luís teve fortes motivações políticas. Luís I era um governante patriota e um amante das artes. Decidiu que transformaria Munique na cidade mais bela da Europa: guarneceu as avenidas com árvores, erigiu parques e museus, construiu a primeira ferrovia do país, inaugurou o primeiro barco a vapor e edificou um canal que ligava o Danúbio ao Meno. Quando Lola chegou em Munique, Luís I já reinava há 20 anos e era um autocrata extremamente popular. Politicamente, era partidário dos conceitos de liberdade e progresso. Com a ajuda de Luís, Lola estreou no Teatro da Corte. Ela e o rei tornaram-se melhores amigos.

Uma parte dos cidadãos de Munique, contudo, não compartilharam do mesmo entusiasmo. Pouco tempo depois da chegada de Lola, já fervilhavam histórias sobre seu passado. Impulsiva, escandalosa, liberal, anticlerical, mentirosa, impulsivamente franca. Essa era a imagem que boa parte dos cidadãos bávaros tinha dela. A imprensa jesuíta referia-se à ela como “a prostituta apocalíptica”.

No último período de seu reinado, Luís I viu seu poder definhar pouco a pouco com o fortalecimento da influência dos jesuítas, que tinham uma postura claramente reacionária. Se por um lado Luís I tinha o reconhecimento dos cidadãos bávaros por ter transformado a cidade provinciana em um grande centro de aprendizado (Munique havia se tornado uma cidade universitária), o desejo do monarca de proceder em suas reformas políticas havia quase que se exaurido completamente. Ele abandonara progressivamente suas ideias liberais para tratar da vida cultural de seus súditos, e após o movimento revolucionário de 1830, o poder dos jesuítas havia aumentado ainda mais. De repente, Lola aparecia para lembrar-lhe de suas convicções políticas de juventude, de sua intenção de ampliar a liberdade política de seu povo, e, sobretudo, do entrave que um governo controlado pelo clero representaria à conquista dessa liberdade. A influência que Lola passou a exercer sobre o reinado de Luís I causou revolta entre os católicos e conservadores, dentre os quais constava também uma importante parcela dos estudantes.

Mas o rei simplesmente fechava os ouvidos às críticas dirigidas à sua amada, para quem escrevia poemas todos os dias. Um mês após tê-la conhecido, Luís colocou Lola em seu testamento e comprou para ela uma casa na Barerstrasse, reformada por seu arquiteto pessoal conforme as especificações da dançarina. “Tudo que Lola quer Lola consegue” é o que se ouvia nas ruas de Munique quando itens muito apreciados deixavam a pinacoteca para adornar a casa de Lola. Esses eventos, juntamente com sua influência progressiva sobre o rei, tornavam-na cada vez mais mal afamada. Ela não recuava. Acusava a todos que discordavam dela de serem jesuítas. Andava pelas ruas de Munique com seu buldogue inglês, que eventualmente mordia os padres que passavam. Como os principais cargos acadêmicos da universidade eram nomeados pelo clero, os professores se posicionavam contra Lola. Já os estudantes estavam divididos. Um grupo chegou a formar uma fraternidade, que se reunia regularmente na casa de Lola para discussões.

Há um verso que faz clara referência aos conflitos entre Lola e os jesuítas: “at night I walk in the park with a whip between the lines of the whispering Jesuits who are poisoning you against me”. De fato, os esforços não apenas por parte dos jesuítas, mas também de outras camadas da população e da mídia para separar Lola e Luís se intensificavam através de cartas anônimas, panfletos caluniosos e caricaturas. Lola era acusada de ser amante dos estudantes da fraternidade, de despir-se diante da janela aberta, de obrigar suas costureiras a ajustarem suas roupas ao seu corpo nu, etc. Entretanto, mesmo com toda pressão popular e até mesmo com uma carta do papa Pio IX repreendendo Luís por “afastar-se do caminho da virtude”, o rei também não recuou. Ao contrário, propôs inclusive conceder à Lola a cidadania bávara, o que gerou uma revolta sem precedentes.

Mas que ainda não foi o fim. Após nomear novos ministros, Luís foi aclamado com entusiasmo por uma parte considerável do povo e também por governos estrangeiros. O grito “Lola e liberdade” passou a ser ouvido nas ruas. Aproveitando o momento de popularidade, o rei recompensou Lola com a nacionalidade bávara, nomeou-a condessa de Landsfeld e entregou-lhe a Ordem de Santa Teresa com o aval da rainha. Lola recebeu também uma propriedade rural e uma renda anual de vinte mil florins. Isso não apenas aumentou o furor da aristocracia e do partido conservador, como também acirrou a rivalidade entre os estudantes conservadores e os da fraternidade de Lola.       

O ápice dessa rivalidade se deu quando um professor católico muito popular censurou o rei por motivos morais, e Luís obrigou-o a demitir-se. Uma demonstração dos estudantes em defesa do professor em frente à casa de Lola transformou-se em tumulto. Enquanto a multidão jogava pedras e quebrava janelas, Lola brindava às pessoas de sua sacada com champanhe e atirava doces. Os estudantes ficaram enfurecidos. Após uma dessas grandes manifestações contra Lola, o rei fechou a universidade e expulsou todos os estudantes estrangeiros. Essa ordem teve terríveis consequências, pois havia ao menos mil estudantes estrangeiros em Munique. No dia seguinte, uma multidão reuniu-se nas praças exigindo que Lola fosse expulsa da cidade. Os ministros informaram ao rei que não poderiam garantir que a polícia seria capaz de manter a ordem por muito tempo. Em 11 de fevereiro, Luís I assinou uma ordem banindo Lola Montez da Baviera.

Lola partiu de trem, e há trechos da letra de J.N. que captam esse momento traumático: (“...and then, later, on a train. It was dark out, I was half-dead”). Depois de todas as declarações de eterna lealdade por parte do rei, uma decisão como essa fez com que Lola despencasse de uma posição em que ela pensava estar segura. Na verdade, ela não compreendia nem a atitude do rei, e talvez menos ainda a do povo, que fora libertado do cativeiro jesuíta graças aos seus esforços. Na música, a partida de Lola Montez parece estar sendo contada do ponto de vista daqueles que estavam fora da relação, e consequentemente de um ângulo bastante superficial (“and the old king fell from grace while Lola fled to save face and her career”), como se Lola tivesse espontaneamente decidido deixar Luís após tê-lo feito perder todo o prestígio que ainda lhe restava.
   
Lola partiu para a Suíça, depois para a Inglaterra, depois para os EUA, depois para a Austrália (há uma referência na música às apresentações de Lola na cidade de Castlemaine, em um teatro recém-inaugurado no qual ela teria sido a primeira a se apresentar. Nessa estrofe, Lola parece narrar do ponto de vista do rei, que estaria desapontado ao ver até que ponto a dançarina teria sido capaz de ir por fama e dinheiro (“Miss Gilbert called to Castlemaine by the silver dollar and the gold glitter! / well, I've seen lots but never, in a million years would think to see you, here”)). Por último, Lola voltou aos EUA, onde viveu até seus últimos dias.

Há relatos (sem confirmação), porém, de que Lola teria voltado algumas vezes à Baviera para rever o rei. Segundo uma biógrafa, “numa carta para seu amigo von der Tann, Luís declara que Lola implorara para que ele fosse unir-se a ela na Suíça, mas ele preferiu permanecer em Munique”. Há um trecho em que fica visível um sentimento sólido da parte de Lola em relação ao rei (“Though the long road begins and ends with you...”). O que não basta, contudo, para apagar todo transtorno passado (“...I cannot seem to make amends with you, Louis...”), até mesmo porque uma multidão de bávaros raivosos estaria sempre à espreita para capturá-la (“...when we go out they’re bound to see you with me”).

O que nos leva a um aspecto muito importante da narrativa: Lola não é estritamente vilã nem vítima. Por um lado, sua má fama rescendia em todos os cantos (“heaven has no word for the way you and your friends have treated poor Louis / may God save your poor soul, Lola”), e ela era vista como a tarântula predadora que queria capturar o pernilongo em sua teia (“you caught a fly, floating by / wait for him to drown in the dust; drown in the dust of other flies”). Esse comportamento não pode ser enquadrado em termos morais, pois é tão somente o modo de funcionamento natural dessa criatura (“whereby the machine is run and the deed is done”). Por outro lado, ela também é “poor Lola”, e se sente uma criança indefesa nos braços do rei, não hesitando em clamar por sua proteção paternal em momentos de fragilidade (“there’s a big black spider hanging over my door / can’t go anywhere, anymore / tell me, are you with me?”). J.N. realmente não parece estar interessada em uma caracterização de cunho moral. Ela entende que Lola era apenas Lola: destemida e frágil, cruel e dócil, traidora e traída, manipuladora e manipulável. Uma das análises que li apresenta uma descrição que vale a pena ser citada na íntegra: “At the end of the day, Lola was in fact a rather erratic person who lived on the edge all the time, without any kind of boundaries or attachments to society, or even reality, and if you add the excess and the alcohol factor (very obvious in this song) and the need to love and be loved back, it does make sense and it is beautiful. She never did and still does not know who they were, the same way she never truly got to understand who she was and what she was looking for in her wreckless search”. Essa visão não me parece, contudo, inteiramente acertada. Ela perde de vista o engajamento político de Lola, e o fato de sua influência sobre o reinado de Luís I ter atingido uma tal dimensão que, para muitos, a verdadeira líder do liberalismo na Baviera seria Lola, e não Luís. Assim, não me parece nada factível que a dançarina estivesse completamente descolada da sociedade. Mas prefiro não desdobrar essa questão.

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Passemos para o momento final do bloco intermediário, a meu ver a parte mais extraordinária da música. Lola começa a descrever a cerimônia do casamento entre ela e Luís I. Um detalhe, porém: eles nunca se casaram. Certamente, como expressão de um desejo não realizado, essa estrofe é quase que inteiramente ficcionalizada.

No lugar de uma cerimônia solene e feliz, o casamento é um caos completo. O momento de jogar o buquê, por exemplo, parece terminar em tragédia (“I threw my bouquet and I knocked ‘em dead”). Surgem então mais referências a um estado de embriaguez (“bottle of white, bottle of red”), que ajudam a explicar os saltos cada vez mais frequentes na narrativa. Lola aparece ainda mais emocionalmente expressiva (“helpless as a child when you held me in your arms and I knew that no other could ever love me as you loved...”), e em seguida implora para que o rei permita que ela permaneça na Baviera, ou peça para que ela fique (“but help me! I’m leaving!). Lola parece então descrever o momento de sua partida, agregando elementos aleatórios por meio de fluxos de consciência, e as memórias correm tão rápido que é quase impossível examiná-las em alguns momentos. E aqui começa a construção da imagem de um descompasso entre uma realidade projetada e a realidade crua, de algo que deveria ser belo, mas não é – como a sensação áspera da barba por fazer, no momento em que o rei agarra Lola e aperta-a contra si. Em seguida, um amontoado de lembranças de diferentes épocas da vida de Lola, combinadas para formar uma única situação. Lola diz “that night I came upstairs, half-dead and, in your kindness, you put me straightaway in the cupboard...”, o que parece remeter a algo que aconteceu antes de sua ida para a Baviera: quando Lola estivera na Rússia, há relatos de que o czar Nicolau a trancou em um guarda-roupa no momento em que eles tiveram uma de suas discussões políticas secretas interrompida pela aparição repentina de um funcionário (o que mostra que o interesse de J.N. por Lola Montez ultrapassa a relação entre a dançarina e o rei Luís). Em seguida, mais referências a álcool (“...with a bottle of champagne”) e à viagem de trem (“and then, later, on a train”). No trem, ela vê uma estrela caindo no céu, mas não se trata de uma estrela cadente, para a qual ela poderia fazer um pedido, mas sim de um pedaço de carvão cuspido por Deus, que é um rato encurralado (talvez uma alusão ao modo como a própria Lola se sentia no momento?) (“as if god himself spat like a cornered rat”).

O clímax se dá quando Lola se dirige a Luís e, em tons de súplica, pede a ele para que beba junto com ela (“I really want you to do this for me, will you have one on me?” / “don’t you worry for me! Have one on me!”). Em seguida, ela repete o gesto sarcástico que fizera de sua sacada, diante dos estudantes bávaros em fúria, mas dessa vez voltando-se para o rei: ela não somente quer brindar com ele, mas também à ele. Essa é a expressão máxima da fragilidade de Lola, que ironicamente celebra a rapidez com que o rei foi capaz de descartá-la no momento em que teve de optar entre ela e a manutenção de seu reinado (“meanwhile, I will raise my own glass to how you made me fast and expendable / and I will drink to your excellent health and your cruelty / will you have one on me?). Com base na melodia é possível notar que esse é o momento mais vibrante da música toda. Me parece que a continuação poderia ser decifrada como uma canção sendo tocada pela banda durante a insana cerimônia do casamento de Lola e Luís (e ela dissera anteriormente: “you asked my hand / hired a band...”). A euforia se intensifica progressivamente até arrebentar o instante e fazer a narrativa retroceder para o início. Lola acorda do sonho, da embriaguez ou da alucinação febril e recobra (alguma) consciência.  
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Terminemos com a abertura e o fecho da música, que são quase idênticos. A primeira cena é o momento da manifestação raivosa em que Lola brinda aos estudantes de sua sacada. Mas há elementos difíceis de serem bem encaixados com base puramente nos acontecimentos históricos. Lola ouve um copo cair (seria a taça de champanhe?) e pensa: “well, that’s why they keep them around”. O que eles “mantém por perto” seriam as tropas e os guardas que protegiam Lola dos ataques dos manifestantes. Estes vão se tornando cada vez mais violentos, e Luís refere-se a eles como “blackguards” (em francês, canaille), isto é, o “povão”, a “ralé”. Em algum momento, alguém é ferido e morre (“the blackguard sat hard, down with no head on him now”), e Lola se sente mal por não conseguir sentir-se mal o suficiente para deixar o rei orgulhoso (pois ela sabe que ele se sentirá mal por aquele que morreu, enquanto que ela encontra-se inteiramente indiferente, brindando e atirando bombons na multidão).   

Logo adiante, Lola está escrevendo uma carta para Luís, supostamente pouco tempo depois de sair da Baviera (o que romperia com a interpretação segundo a qual a narrativa seria proveniente dos dias finais da vida de Lola, e daria margem para pensarmos que a música inteira se passa no momento em que Lola está bêbada e indo embora de trem, o que é plenamente plausível): “by the time you read this I will be so far away...”. Em seguida, ela parece lamentar novamente sua própria partida, ao mesmo tempo reconhecendo que, nas circunstâncias dadas, nenhuma outra via era possível ("daddy longlegs, how in the world am I to be expected to stay?").
         
O fecho repete a primeira estrofe e termina com Lola perguntando reiteradamente a Luís se ele está orgulhoso dela, se ela conseguiu sentir-se mal o suficiente, se ela agiu certo. Como afirmei no início, a abertura e o fecho são os momentos mais difíceis para extrair uma interpretação convincente, e essa que apresento aqui de fato não me parecer ser. Mas há algo que podemos captar e que se sobressai a esse emaranhado de detalhes que não podemos adequadamente entender. Trata-se da ânsia de Lola pela aprovação do rei, que faz com que ele reapareça como a figura paterna capaz de amá-la como nenhum outro conseguiria. Embora haja momentos em que Lola pareça conscientemente se vitimizar para fazer o rei sentir-se mal por ela.

Cabe portanto perguntar, com base na complexidade abismal que é a relação entre Lola e Luís, se a imagem predador/presa ou tarântula/pernilongo seria mesmo pertinente. Do ponto de vista da opinião popular, é evidente que sim. Do ponto de vista de Lola ou do rei, contudo, essa imagem desmorona com facilidade. Mas, vale a pena lembrar, não é apenas o ponto de vista de Lola que parece estar sendo levado em conta na narrativa, por mais que a voz seja dela. É a tensão entre a imagem socialmente construída de uma manipuladora fria e inflexível e uma autoimagem muitas vezes fosca, trêmula e incerta que me parece guiar a reconstrução do passado empreendida pela narradora.



Referências: Os dados biográficos e históricos foram, em sua maioria, coletados a partir do livro Cupid and the king, de HRH Michael of Kent. As interpretações que me foram úteis retirei de songmeanings.com, genius.com e allthebirds.tumblr.com. A entrevista mencionada está aqui. A música juntamente com a letra está aqui. Uma versão ao vivo memorável está aqui. Não posso deixar de mencionar também o filme extraordinário de Max Ophüls intitulado Lola Montés, de 1955. 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Não perder de vista

 

que o sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas. O sentido está nas coisas.