domingo, 10 de julho de 2016

O bolo para a mariposa




Ele, quando olha em silêncio, não diz. A respiração é só um detalhe. O rosto se forma em massa mole pronta para ir ao forno. Olhar fixo e absorto, as favas de baunilha presas ao cabelo. Os dedos cobertos com coisas. As bromélias estufadas, os resíduos espumados, os dias exaustivos, os metais pesados, os espessantes e edulcorantes que são a malha que recobre o tecido longo e desbotado da ostra oval. Tudo é o mise en place do bolo que deverá ser entregue à mariposa em troca da verdade que já possuímos e não podemos desativar. Um cardume se desloca. Pensa: no mundo exato as pessoas poderiam fugir sem se desesperar. O ar escuro desorganiza os processos racionais. O cardume está precisamente depositado dentro da bandeja, junto aos ingredientes: uma planta-ovo retirada com cuidado de seu milímetro quadrado no campo de lavoura, os besouros azuis, a cobertura verde das folhas maduras, a infusão dos ossos que espera para amornar, o fundo de ostra que preparamos há oito meses e congelamos para que durasse até essa ocasião. Estamos diante de uma tarefa árdua, quase como um preparo minucioso. O sal precisa ser pacientemente adicionado. O peito inteiro, quando dói, o diafragma abre e um fragmento de mar frita as urtigas sem sal algum. Ainda que o sal escorra da montanha? Não há sal algum que escorra incólume. Um inseto preso com um prego, as plaquetas que implodem simplesmente, sem sequer perguntar. Juntamos as pedras no lugar dos olhos e não olhamos para uma ponte que ainda se estende, quando uma coisa excelente como esse plano minucioso é colocada na pedra e batida até espasmar. Rosas planas sopram das pontas, nada acontece sem que tenha sido dada uma ordem para acontecer. Por isso esse escambo doce com a mariposa deve ser documentado. A hora range como uma porta, mas uma ou duas horas mais tarde não deve fazer diferença. Olhamos as instruções claras no livro de receitas: é preciso de dois a quatro infernos para criar uma massa úmida de um bolo. A quantidade obtida é suficiente. O único que poderia carregar uma flor silenciou por cinco dias. Fizemos a jornada triunfal e depois mais cruzamos um pequeno oceano até chegar ali onde os romanescos eram depositados nos pratos que colocávamos na bandeja. E assim aconteceu. Até que voltamos dentro de um verão escaldante, cheios de milhões de coisas para contar. Contamos para a cotovia, para o bem-te-vi e para o pardal. Por medo do colapso, a atmosfera foi reduzida a um mínimo insignificante, até colapsar. Ao inseto que voava foi ordenado que se sentasse e comesse quieto. Cada nuvem era um dia em si mesmo que não acontecia. Agora batemos o creme de claras e, se tudo sair como planejado, então o dia não será mais o que é, e será possível descansar. Ainda bem que o dia aqui não está mais existindo, e nem depois. Olha-se o jornal e está escrito: “Crânios de criaturas desconhecidas são encontrados em maletas”. Mais nada. Isso no primeiro dia, e no segundo dia já não aconteceu algo que alterasse alguma coisa. Quando o primeiro se foi, as flores ainda estavam de molho por pouco tempo, a água ainda era pálida e insípida. Quando o segundo se foi, a casa escorrida em cimento bruto. Quando o terceiro se foi – então. Agora as pessoas podem salvar umas às outras. A verdade precisa ser desativada. O bolo deve assar uniformemente enquanto o fundo de ostra reduz na panela. Iniciamos um procedimento estritamente pragmático de um amontoado de leituras que se somam e produzem um incômodo diário e uma mobilização quase sistemática. E então, no passo seguinte, todo planejamento racional se choca com sua própria impossibilidade. E enquanto planejamos a matéria porosa dos próprios dias, a mariposa enfim chega e aguarda calmamente a entrega da encomenda que estufa no forno até secar. As palavras se organizam urgentes diante da coisa, que não acende nem apaga. Depois da ponte não há nada, as pontes adiante uma após outra marcam o intervalo da rodovia, o instante em que os carros ultrapassam uma barreira que está dada intuitivamente. A mariposa olha fixamente e não treme. Ela pede uma vasilha de flores para guardar os pés e ordena que se feche as janelas para estancar o vento. Isso até poderia chegar a ser uma pista, pois quando a mariposa olha cansada, ela revela as cifras daquele que nos desativou. E quando a mariposa carrega um ímã, ela própria se desmagnetiza. Muitos deles já estão compreendendo o esquema, eles não aprovam qualquer um. E ela também. As horas caem de uma vez só e se espatifam pelo chão. Olhamos envergonhados sem nem conseguir olhar. Os desenhos guardados na estante dentro de uma memória morna. O fundo de ostra está pronto para cobrir o bolo. O vento paralisa na face externa do vidro da janela, as bromélias não conseguem entrar. Dormimos assustados com a profundidade que o próprio sono alcança, até que o sono é perturbado pela ostra que rosna enquanto dorme, e acordamos. Cortamos os cachos de luz nos cabelos, retiramos a tampa da caixa craniana. O que houve? Tudo aconteceu como deveria acontecer, e a proteção permitiu que, depois de uma cobertura imensa de palavras sobrepostas, as coisas pudessem despencar dentro da caixa que construímos para adentrar e viver. O sono chega novamente, e dessa vez dormimos em virtude dos espasmos, e não a despeito deles. O dia atinge seu máximo – que na verdade é também seu mínimo. A mariposa espera sentada, cansada de esperar. Uma solidão pequena se esconde nos alvéolos de uma levedura na parede. O mofo estufa e os musgos espalham-se sobre a mesa e inclusive no vidro da janela. O dia está tão alto que chega a estar baixo. Entreguem a ela de uma vez! A mariposa espera na portaria: pálida, calma, altiva, grande como um pardal empalhado. O vento para pela segunda vez. O dia está guardado em local inespecífico. Ela se transforma, pouco a pouco, em uma árvore (aviso: se ela for, iremos com ela). Olhe para o meteoro que vem nos buscar (a mariposa já quer ir embora, mas não deixamos). Retiramos a cobertura de musgos com um boleador: forma-se uma bola de sorvete azulada que cobre as extremidades do bolo todo áspero, salgado, frio, insosso, oleoso e azul (a mariposa devolverá sem hesitar!). Nem a melhor cobertura de manteiga rançosa e rosas poderia remediar. É preciso um bolo melhor. Olha-se por todo canto. O que há aqui além de espinhas de peixes utilizados no cozimento da massa? Sim, e as batatas antigas que murcham e perdem umidade para o ar que também perde umidade para a atmosfera que pulveriza a umidade e permanece intacta, assim como deve ser e assim por diante. Melhor seria um bolo de flores para uma mariposa cansada, isso com certeza sim. Não há mais volta, mantemos a postura e não transparecemos o abismo. Estufamos o diafragma para fingir que ainda estamos respirando – todo choque aqui pode ser fatal. O bolo é entregue à mariposa morta de tanto esperar. Quieta, ela olha e sequer abre um olho ao dizer. E sequer espera por um aro que encaixe para poder dizer (nenhum aro encaixa, jamais). A mariposa abre a boca escura e sussurra em dialeto morto. Cai um olho da ostra e escorre. O dia treme em todas as extremidades. Por deus do céu, que conselho medíocre o da mariposa. Quando olhamos inconsolados e repetimos a pergunta, ela nos entrega a verdade duplicada. Após o bolo ser entregue, o caminho sinuoso que, passando pelas peras, o rochedo. Até o fim da caverna para sepultar a ossada do cardume utilizado. Qual o tamanho do vazio? Antes de ir embora a mariposa nos ajuda, segurando uma fita métrica rasgada, a medir o tamanho do vazio. Ela tem pressa, mas é solícita. Depois disso, macia e enigmática, ela guarda o bolo insosso. A conversa final com a mariposa também é insossa. Desdobra-se o corpo da mariposa em pequenas e suaves folhas opacas que vão cobrir os blocos de nosso corpo morto. Agradecemos a todos os fantasmas por esperar – escorre uma lágrima de um pequeno fantasma filhote. O vazio é totalidade sem tamanho, essa é a obviedade que toda palavra carrega consigo sem saber. O dia continua exaustivo sem cessar.