terça-feira, 31 de março de 2020

Às vezes vejo um vulto e me alegro




Pantufas me ligou. Atendi em prantos porque já sabia do que se tratava. Ele me pede para assinar os formulários empurrados por debaixo da porta durante o temporal. Respondo que eles já se desmancharam por completo, que a verdade é mais (ou menos) firme do que parece, e que definitivamente não me preocupo mais, pois desde que me ensinaram a respiração diafragmática, não há nada que eu não esteja preparado para enfrentar ou perder. 

Ele faz então um comentário que eu adoro e vai de encontro com a minha ostra. O meu amigo não me espera, tenho certeza, mas eu chego sem avisar. Coloco as malas no centro da sala, desembrulho as linhaças embaladas a vácuo, semente por semente. Puxo o abacate que derreteu dentro do isopor. Penso: se eu chegasse mais cedo, ele ainda estaria aqui? Um ou dois anos mais cedo? eu pedi permissão para passar para o próximo degelo. Agora lembrei que ia escrever e retirar todas as pálpebras. Pantufas está aqui e não me passa nenhuma informação ruim. A solidão nos quebra por inteiros, mas, no meio de uma pandemia, ele não me liga para passar uma informação ruim. O mundo continua ótimo, as pessoas se sentem amadas e reprimidas. Eu me divirto com a pessoa que nunca serei, mas me fortaleço com os blocos de terra que colho e mastigo direto do quintal. Se ele estivesse aqui, correríamos pela sala juntos em busca de algo para jantar. Eu pediria a ele que trouxesse outro pardalzinho ensanguentado para preparar uma refeição adequada (a massa seria qualquer uma, a abobrinha eu adicionaria de qualquer jeito para diminuir o índice glicêmico, conforme minha amiga me ensinou). Beberíamos qualquer coisa sem álcool e sem gosto, pois no dia seguinte eu saio para medir minha fosfatase alcalina bem pela manhã, e depois me liberam para mijar todo chá que consumi ao longo da semana inteira que durou dezoito dias e nunca terminou. Quase piso em uma pomba na calçada, ando como se alguém me perseguisse, e assim deve ser. Penso em tudo que poderia ter feito, nas pessoas, coisas e pedras que poderia ter visitado esses meses todos antes da explosão. Tudo é tão óbvio que não consigo acreditar. No meu sonho, algumas noites mais pra frente, eu fazia um esforço ridículo para me mostrar compreensivo com as coisas que eram despejadas como uma verdade auto evidente por um velho que me recuso a nomear. Com muita dificuldade, eu tentava fumar um saquinho de chá usado. A verdade é que tenho muita esperança (eu tenho toda esperança, sim). Esperei que ele estivesse aqui para me ajudar a empilhar. Fui barrado e não me ajudaram a estruturar um caminho, sendo que nenhum dos dois estará aqui comigo, nunca. Pantufas me olha atônito, me diz que é possível continuar assim, sem coisas para dizer, e que tudo bem não dizer, não é um absurdo. Como vamos nos preparar juntos para essa guerra? Vamos acumular todas as armas para existir? Você me ajuda a arrancar um cano da tubulação de água, vou polir meu guarda-chuva, reunir as facas de manteiga, as tesouras sem ponta, os gravetos. Todo armamento é coletado dentro de alguns dias. não sei como fazer sua armadura. Recorto uma caixa de ovos, costuro com arames de saco de pão, prendo em seu dorso com elásticos, você me olha cético, nunca fabriquei material bélico na vida. Sabemos que qualquer erro mínimo pode colocar em risco nossas vidas que já estão acabando. Você mia alto como um ganso quando encaixo o pote de manteiga na sua cabeça como um capacete. Não conseguimos levar a sério nada disso, mas dessa vez é um ser morto-vivo, infinitamente menor que os sapos e cabritos que enfrentamos das outras vezes. Você se descontrola por um instante e ameaça fugir outras vezes, morrer outras vezes, sem deixar sinal. Seria tudo mais fácil se apenas assinássemos um requerimento para não sermos infectados? As autoridades sanitárias dizem que, no mínimo, isso não funciona. Mas Pantufa é sua própria autoridade e não se curva a mais ninguém. Por um segundo ou um século nossas armaduras devem perdurar, mas o quanto baste. Eu me movimento de maneira tosca e você já desiste de emitir qualquer juízo, você sabe que sou infinitamente mais burro do que você, e nesses seis anos você teve o cuidado de desenvolver toda complacência para me ver executar todo tipo de asneira sem julgamentos, e sem nos colocar em perigo, só que agora é diferente. Nosso inimigo não está escondido por trás das urtigas, a solidão é limpa e extrema, estamos extremados e você me joga toda responsabilidade por existir. É verdade, era impossível estar aqui o ano inteiro. Você podia ter me enfrentado, mas entendo que sua estratégia seja mais sofisticada, mesmo que o fim tenha sido torpe. Eu odiei cada segundo, sim, mas não esses em que estávamos aqui. Você executava a mesma sequência de movimentos sempre que entrava no quarto: contornava silenciosamente a cama até o lado direito (esse passo era tão silencioso que muitas vezes era imperceptível, como se a sequência começasse só no passo seguinte), pulava na cama, passava por cima da minha barriga como se nada estivesse acontecendo (e não estava mesmo, nunca), seguia até a outra ponta, até a mesa de cabeceira do lado esquerdo, olhava por ali, suspeitava, permanecia tempo o suficiente para parecer que aquela etapa era tão necessária quanto as anteriores, olhava para mim e voltava, sentava ao meu lado, dormia, entrava nas cobertas quando necessário, deitava no pé da cama quando queria. E assim era. Às vezes, muito secretamente, você parecia me pedir para não continuar, e você estava certo, mas isso eu só observo retrospectivamente. Eu não obedeci e você então me mostrou. Eu olhava por cima dos seus ombros uma luz alcançada para poder dormir. 

Quando você chegou tão minúsculo, dentro da gaiolinha, tão miseravelmente pequeno e molinho, levei você até o quarto, não conseguia sequer acreditar. Ele tinha um laço azul no pescoço, como um presentinho mole e esquivo, mas doce. O que ele pensava? Ele não chorava nem sorria, apenas pulava de um lado para outro do assoalho. Ficou alguns meses dentro do quarto até que as outras janelas fossem teladas e ele pudesse conhecer e se apossar do resto da casa. Eu devia ter suspeitado que alguém estava prestes a macetar minha única alegria, mas eu não tinha como suspeitar. Não tive condições de criar um dia de dentro de uma palavra. Você semeia minhas mãos do jeito errado e nada cresce. Às vezes vejo um vulto e me alegro, são pequenos momentos que fazem o dia valer a pena, ou quase isso. Alguém aparece para me entregar um produto que não pedi ou uma informação que não solicitei, mas que será importante em algum momento nessa travessia pelo horror com corpos empilhados nas calçadas. Minhas mãos têm estrias ou só estão desesperadas? Ouvimos seu miado todas as tardes (sei que não estou delirando, pois não ouvi sozinho), mas será ele ou outra pessoa? Ainda subo no telhado para ver, isso eu prometo. Enquanto isso, deixo os cabelos de molho na tigela com leite que ele nunca consumiu. Ele me envia um olhar perverso e diz, em tom de autoajuda: “você precisa acessar um eu interior mais maciço, mais fibroso, em que cada paulada seja dada para matar”. Meus lábios racham antes mesmo que eu consiga processar toda a mensagem, mas ele só está sendo metafórico, me dizendo para ir atrás das coisas sem esperar por nada ou ninguém. Ainda estou infusionando dentro da cisterna, com os braços destacados do corpo. Peço a ele que se apresente a todos que estão dormindo, é uma questão de educação (que eu não cumpro). Ele então me olha mais calmo, me pede para não ter vergonha de nada que acontece. Aparentemente, tudo o que ele quer é que eu endureça e cresça de uma vez para não precisar sofrer. Ele tem o cuidado de retribuir cada coisa dada, até mesmo o que faltou. Eu adorava dizer que não há um único poste plantado no meu quintal, e você não se aguentava de tanto rir, você ria das coisas que eu ia colocando sobre a mesa. Me desculpe, eu não devia tentar ser uma pessoa, mas não consigo segurar. Minha linguagem é muito limitada, eu sei, não consigo expressar muita coisa, você até cansou de me desafiar. Eu quase me surpreendo com você de novo. Eu sigo até uma próxima hora, cozinho coisas no vapor. Esquento novamente meu chá de sertralina e coloco as nozes para moer no caldo que utilizarei mais tarde, só quando a semana virar. Você era a pessoa mais engraçada que conheci. Você me encontrava com espanto sempre nos mesmos lugares (eu não tinha criatividade nenhuma para me esconder, meu mundo é onde nada acontece). Quantas pessoas ainda pedem para macetar minha cabeça e eu não permito? O mundo continua ótimo, eu só recebi um telefonema ruim durante um temporal. Mas tudo mudou sem o meu consentimento, tudo mudou sem que sequer chegasse o formulário para eu assinar. E assim as coisas vão sendo empilhadas umas sobre as outras como conchas, formigas ou células tumorais.