sexta-feira, 10 de julho de 2020

obrigado a todos que submergiram




Hoje não me reconheci, comecei a lavar a louça pelos talheres. Pensei: se ele estivesse aqui comigo, então ele estaria aqui comigo, e eu não reclamaria de nada além do habitual, a dor nas costas ou o incômodo constante diante das pequenas tarefas deixadas por fazer. Um dia como hoje não é grande coisa também, e eu e você não saberíamos o que fazer com os destroços, mas secretamente poderíamos gerar algo para estiolar, para escapar de um buraco absurdo no qual fomos gentilmente depositados. Se não existe nada nem ninguém, como saímos desse espelho? Juntando uma coisa na outra, sem colar? eu pergunto em prantos se alguém saiu de banho tomado, se alguém desinfetou os guardanapos um a um até eles esfarelarem. Por favor, alguém desceu do carro quando viu o animal morto parado? alguém me trouxe um rinoceronte filhote para cuidar e eu só vi agora? Ele pode ser ajudado a transpor até outro oceano. Nada é tão interessante quanto parece. Tem algo na linguagem que é irritante por si só? Mas, e se o potencial não for todo esse? O lugar foi depositado como que para respeitar. Sem saber, eu deixei que eles respeitassem cada espaço, e parece que eu não tenho como ajudar, não sei qual urna para depositar uma palavra ou um grunhido que possam interpretar como uma intervenção. Alguém por favor abre um espaço para um neurótico passar? obrigado. Eu receio que nada seja tão simples assim, que eu possa me colocar no seu lugar, mas sem ficar por muito tempo. Não sei o tamanho da fatia do desastre que já passou, e se o que está por vir é só areia muito fina. “Convenhamos que nós já chegamos mais longe do que imaginávamos que chegaríamos”, isso foi muito especial, me foi dito no dia cinco de junho e eu cataloguei com cuidado, espetei no meu quadro como um inseto fossilizado, meditei em silêncio sobre tudo que não entendi. Como aquelas verdades em que, de tão manifestas, batemos a testa ao passar. Algo não me deixa engolir, já caímos para fora de qualquer lógica assumida, eu senti que estávamos esperando. Um avião com noventa toneladas de lixo hospitalar passa por cima da minha cabeça. perco o timing quando você me diz: aqui cresce seu osso em alguma parte. Sim, eu confesso que estive perto de todos eles que estavam nascendo. Todos os dentes. Enquanto eu lavava a panela nova e intacta sem alguma dificuldade, Laurie cantava em meus ouvidos: this is the hand, the hand that takes. Eu estou requisitado a responder sem nem mesmo saber como serão as próximas horas, os próximos dias, e assim por diante. presumo que meu amigo salsichas já não exista em nenhum território. Ele me conta uma anedota que eu não entendo e ele não repete. Eu acaricio seu pescoço, penduro um belo colar com um pingente que de longe parece uma rocha magmática comum, mas de perto é só uma fatia de broa de centeio ressecada. Se ele estivesse aqui, estaríamos procurando por todos aqueles que estão dormindo perdidos, terminaríamos macetando-os em um ritual maciço, previamente agendado. 

Agora eu começo em um novo oceano (mas é o mesmo). Não me proponho a caminhar, mas uma coisa macia gruda em minhas costas. ele era muito engraçado, eu ria dele pelo menos uma dúzia de minutos por dia. Agora eu tenho que insistir um pouco mais para que o bonito tente regurgitar. Pois sim, eu espero ter ajudado. ninguém me mostra se há por onde ir, se há algo a que posso me agarrar de modo recalcitrante. Mas, meu amigo, com toda sinceridade, você estava descascado e ruim. Você percebe que, antes de cantar “you’re trying too hard” pela segunda vez, ela ri despretensiosamente? Ela não se aguenta e ri, e essa é toda reação ao percebermos que o esforço é, simplesmente, absurdo. Não espere nada diferente, mas posso completar uma respiração melhor e simplesmente murchar em silêncio. Estamos adentrando agora o osso ruim, mas que pode ser piorado, desde que se saiba todos os procedimentos de antemão. Coloca na sua mochila o andaime desmontado que será levado para o campo, dorme por catorze horas seguidas e se enrola em um tronco do sonho para simplesmente não voltar. Sonha: a vida pode ser bem mais simples que isso. E nós até podemos existir. Dorme, meu docinho, esse inferno não vai acabar. Você está cada dia mais crescido e até cai dentro dos milênios. Nada será como antes, os cadáveres se amontoam na calçada, a existência deles é seu próprio desmanchar. Uma ostra velha some no firmamento. Um outro olho despenca e desmancha. Você olha calmo no meu olho e eu escondo. E, por um simples descuido, esqueço de esquentar o café, de trazer o peixe para a grelha, de telefonar para os familiares mortos, de consumir o Rivotril empanado e frito ainda quente. Esqueço-me de todos que estão morrendo nas casas, nos jardins (é tecnicamente possível morrer em um jardim?), enfim, não sei responder com exatidão. sim, adequadamente eu não sei te informar, você vai me desculpar, com certeza. A encomenda está parada e não quer aterrissar até a minha casa. Não me informe se você estiver dormindo, mas pode retornar minhas mensagens dentro de alguns meses se assim for melhor pra você. Obrigado a todos que submergiram. Eu perco meu osso (não estou entubado), você morreu e eu não dormi. O sentido de morrer está dado, vamos completar. você não ia prosseguir por muito tempo, talvez no máximo uma década. Eu rio quando me lembro de uma carcaça sobre a minha cama, sobre mim, ou me olhando no sofá sem ruídos. Escorre uma pequena lágrima insone que pode ser confundida com soro fisiológico ou chuva ácida. Como chegamos nesse ponto, meu deus? As pendências se acumulam, as pessoas me informam para esperar, ao menos agarro meu título e vou-me embora. Me pega por aquilo que podemos construir juntos. Um buraco em meu estômago mole. Eu encolho todas as minhas vértebras e deixo você sair, enfim. Ao vento quieto. Deixo de existir, ao vento quieto. É quase amanhã. Eu vejo a forma com que eles digerem a morte dos pais deles, e penso se vou digerir assim a morte deles também. Em minha floresta onde estarei um dia, junto a meus gatos, minhas folhas, meu osso de estimação, minha tartaruga empalhada, meu pasto inteiro onde eu mesmo possa pastar todo dia ao acordar. Sim, isso tudo é tão distante, mas tão presente... Meu irmão está certo, não há nada lá fora. Será que no fundo ele sabe mais do que todos os outros que ainda estão tentando? É preciso averiguar com uma pesquisa muito delicada, para a qual não estamos sendo financiados. Me faltam palavras para viver, não consigo me enfrentar, todas as lembranças dormem em silêncio. Me peça para ir desgrudando as coisas devagar, senão termino em poucos minutos e passamos o resto do ano sem nada para fazer. Mas uma coisa alegre se abre na varanda, quando eu já tive uma (já tive?). Um urso cai da escada e é isso que estamos assistindo até agora, o período inteiro está amassado, é muito bom o tempo livre, é bom o tempo que passamos desintegrando aqui ou no quintal, preparando uma salada de miolos, passando os panos úmidos pelo cilindro até secar, amassando o caldo para o purê, fazendo tudo com muita, mas muita minúcia, o dia é limpo e quase não há som ao redor, ele mesmo raramente falava alguma coisa, só quando queria um cubo de gelo para brincar. Foi-se. O bloco de sucrilhos umedecido pela manhã, os cotonetes que escondemos e não podemos encontrar (seu uso já foi banido, mas ignoramos). Mas, pelo amor de deus, ninguém aqui colabora, um inseto acha que precisa bater à porta quando quer entrar, são formalidades excessivas que vão se acumulando e desativam qualquer vontade que tínhamos (não tínhamos) de continuar. Eu desaprovo (coloco as mãos na cintura e me mantenho em silêncio absoluto). Normalmente eu venho até aqui e fico confuso. Você tem que se juntar a esse time, você não pode esmorecer, não pode jogar fora todo trabalho feito e acumulado etc. Você precisa pensar nisso com mais calma e cuidado, retorcer os onze anos até que escorra o resíduo aproveitável. Você não devia se isentar, por deus que não. Você fez tudo isso com seus próprios braços e pernas, olhe e se desespere, mas com calma. Com sua ansiedade orgânica, seus ossos guardados em ziploc.




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